Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasFranguinho no churrasco António Cabrita - 7 Jun 20187 Jun 2018 03/05/18 Há gente que sabe aproveitar todas as oportunidades para se mostrar inconveniente. Como aquele padre que em todos os enterros improvisava em torno de um tema que só ele considerava fascinante: a história do ataúde, desde os sumérios até hoje. Como o presidente do Sporting, que se julga o criador do Jurássico Parque; como Hércules, que desflorou numa noite as 50 filhas de Téspio, sem que nenhuma delas tenha gozado; como o chato que apareceu na Feira do Livro e que me exigia a oferta de um livro em memória de uma bebedeira acontecida há trinta anos, o mesmo tempo há que não o via. Escrevo esta crónica depois de o ter tido de aturar meia hora até que o mandei às favas. E aproveito o incómodo para contar como esta feira do livro de Lisboa me entristeceu pelo excessivo número de stands e de promoções onde se “liquidam” livros – de um euro a cinco. Excelente para o leitor que sou, pois com 50 euros compro uma dúzia de livros de arromba, mas deprimente como sintoma do que se passa na área dos livros. Dia 31 fiz a apresentação de um livro de Carlos Alberto Machado, Puta de Filosofia. Um senhor policial com feroz incidência política e onde, sobretudo, se cria uma personagem, coisa mais rara do que se crê. Foi porém descoroçoador constatar – sabendo que o Carlos, como responsável pela Companhia das Ilhas, já editou mais de cem autores, e soma como autor inúmeros livros, entre os quais uma colectânea de poesia na Assírio e Alvim com excelente fortunata crítica – que ele veio da ilha do Pico, onde vive, para a Guilherme Cossoul para lançar o seu livro face a 7 pessoas presentes na sala, sendo que duas lá aterraram porque me queriam ver. Há algo que está realmente doentio na esfera da literatura e da sua recepção. Depois, a explosão de pequenas editoras com tiragens diminutas é simultaneamente salutar e um sinal de tribalização preocupante. A cidade está dividida, o meio literário está pulverizado, as leituras andam dispersas. Cada um fica com os seus e uma perspectiva geral afunda-se. Contaram-me que ia para guilhotina a biografia de Alexandre O’Neill da Maria Antónia Oliveira, editada pela Don Quixote. Espero que seja falso. Seria outro péssimo sintoma. Se nem já o O`Neill atrai leitores apetece deitar a toalha ao chão. O que é facto é que os média ajudam este estado das coisas: uma má comédia, um mau filme, uma má exposição de pintura, despertam sempre a atenção da imprensa. Um livro quase nunca. Quem deu conta da nova edição de poemas de Carl Sandburg, com versões de Vasco Gato a juntarem-se às de O’Neill da livraria-editora Flâneur? Como é que ainda não esgotou? Quem topou a edição do belíssimo texto de Paul Auster, Espaços em Branco, com uma boa tradução de Maria da Conceição Sendas, da (não) edições? Foram devidamente celebrados os últimos livros de Alberto Pimenta, na Pianola, uma figura absolutamente central em quarenta anos de experimentalismo literário e um pensador sobre literatura com poucos émulos à altura em Portugal? Já se falou sobre a tão “extravagante” como bela aventura editorial da Livros de Bordo, da Maria João Belchior, uma editora devotada à divulgação da cultura do Oriente? Vá lá, saiu uma referência no Diário de Notícias. Já nem se pede que se leia Wenceslau de Moraes e O Bon-Odori em Tokushima, que há meio século estava esgotado, experimente-se a História dos Mongóis aos Quais Chamamos Tártaros, de Carpini. A cultura definitivamente só é encarada como divertimento. É o franguinho no churrasco no reino do comissariado político. 04/05/18 A propósito, o O’Neill, este esteve sempre mais próximo das safadezas de Dada que da propensão oracular de algum Surrealismo, e fazia do riso uma arma com que desmontava as ilusões da teleologia poética. O seu é um riso que afirma, ou, antes, que desactiva pela afirmação uma energia reactiva, pelo que também não hesita em explorar todas as ambivalências, mesmo quando se articulam de forma desconstrutora. Peguemos numa das suas facécias mais conhecidas: O GRILO O grilo não só de ouvido eu cri-qu´ria sabê-lo não só de gaiola cati vá-lo mas dáctilo grafá-lo copiar seu abc de pobre o poema começa por ser “um achado tipográfico” que desenha meia gaiola – a outra metade desenha-o a imaginação do leitor. Depois traslada a natureza para a linguagem pela metamorfose aliterante do vocábulo «grilo» em «grafá-lo». Segue-se que, no próprio coração do texto/gaiola, o poema em vez de falar da linguagem do grilo, encarna-a: cri-qu´ria-a. Isto é, inclusive quando parece retirar à poesia a ganga romântica, dessublimando-a, o poema acaba por cumprir um dos desideratos românticos: nomear as coisas que se amam com a linguagem das coisas que se ama. E temos, à vez, riso, experimentalismo, ludismo… mas também, a contrapêlo: celebração e elegia. Só há uma forma de agirmos em vez de sermos agidos pela cultura que nos condiciona as virtualidades da deliberação: é apoderarmo-nos o mais profundamente de todas as suas florações até que, pela comparação e o diferimento, possamos potenciar uma distância crítica; visto não haver quaisquer hipóteses de nos ser devolvida a idade da inocência, a subtracção agramatical.