Mísia, cantora: “O fado não é triste, é profundo”

Pode ser quase vista como a fadista punk portuguesa. Mísia começou a ter sucesso no estrangeiro antes da chegada do reconhecimento português. Canta o fado porque canta a vida e marca o seu percurso com genuinidade. Ao HM, a intérprete, como prefere ser referida, falou do presente póstumo que deu a Amália e do seu fado imperfeito

 

Definiu-se como sendo a “anarquista do fado”. O que quer isto dizer?

Foi uma resposta que dei a uma entrevista. Há sempre esta procura da sucessora da Amália, da nova rainha do fado, como se isso fosse possível. O caminho que a Amália fez foi o caminho que foi dela e há sempre esta tendência a chamar-me a mim e a outras pessoas de novas rainhas do fado. Uma vez respondi: não sou a nova rainha do fado e se fosse alguma coisa seria a anarquista do fado. A partir daí esta é uma frase que me persegue, não me incomoda, mas persegue.

Porquê anarquista?

Começa logo por eu não ser monárquica e porque fiz as coisas à minha maneira, sempre com muito respeito, mas fiz o meu caminho individual. Não segui regras. Isto é uma atitude. Mas, sobretudo, porque estou em contraposição àquela coisa da monarquia. Por outro lado, a meu ver, só há uma rainha, e é a Amália.

O fado para si não é triste nem alegre. O que é?

É a vida com tudo o que tem lá dentro. Actualmente, há uma corrente ou uma tendência que deixa as pessoas muito aflitas. Parece que sentem que têm de esclarecer se o meu fado é triste ou é alegre. Como se isto fosse obrigatório. O fado não é nem uma coisa nem outra, o fado é destino com tudo o que isso tem lá dentro. Não é uma descoberta da pólvora cantar fados alegres e voltamos à Amália que já cantava a Mariquinhas, etc. Mas agora parece que há uma preocupação que o fado não seja triste, o que é uma coisa impossível também. O fado não é triste, é profundo. Tem a profundidade dos sentimentos maiores da alma humana, sobretudo porque fala da vida e da morte, pelos menos os fados que gosto de ouvir e que gosto de cantar.

Quando começou a cantar, o fado não tinha o público que tem hoje. Como é que foi o seu início de carreiro e como vê agora o reconhecimento e aceitação deste género?

Comecei a falar com editoras depois do 25 de Abril, numa altura em que o fado sofria um estigma e tinha duas dificuldades: não era comercial, não vendia e culturalmente também estava ferido de morte. Era uma altura em que não era nada aconselhável cantar fado. Aliás, as pessoas dizem-me muito “tu assim vestida com essa imagem, porque é que não cantas pop ou outra coisa?”. Eu respondia que não, que queria fazer um fado como eu o sentia, com novos poetas, com pessoas que não são do universo do fado. Foi difícil e oscilei durante muitos anos entre um grande êxito no estrangeiro e a falência no meu país porque as pessoas não estavam abertas a esta proposta. Hoje em dia isso não acontece. Mas também de acordo com os críticos do fado, agora é um género mais consensual. As pessoas são jovens, cantam mas não vão ao núcleo mexer nos poemas. É menos arriscado do que o fado que eu e o Paulo Bragança fazíamos que era uma coisa muito mais subversiva.

Como explica esta adesão de público?

Acho que veio de fora para dentro. Não é nossa culpa, dos intérpretes, nem nosso mérito. Fui a primeira, depois da Amália, a ir cantar aos sítios onde ela tinha estado desde a Roménia, à Polónia ou à Turquia. Começaram-se a editar discos e a aparecer a moda dos ciclos de músicas do mundo que calhou também ao fado. Acho ainda que o tempo põe as coisas no seu lugar e que os portugueses perderem a vergonha de gostar de fado. Também é cantado, hoje, de uma maneira mais acessível relativamente à altura em se usavam as letras cantadas no tempo da Amália. Hoje, esta moda do fado tem coisas boas e coisas más. Coisas boas porque atrai uma grande visibilidade para este género de música, porque é fácil gravar e porque há vários tipos de fadistas. Por outro lado, também há o perigo da banalização e do esvaziamento das letras e do significado.

Canta poemas do Lobo Antunes, do José Saramago, do Vinícios de Morais e de muitos outros. Como é que escolhe as letras para as suas canções?

A maioria das letras que canto de poetas vivos – acho que só o António Lobo Antunes é que não o fez – são poemas escritos directamente para o meu trabalho e para a minha voz. É um ponto de honra. Não é só porque escrevem para o meu trabalho mas, dada a situação de desprestígio do fado quando comecei a cantar, achei que trazer estes poetas era uma forma de provar que o fado era importante. O José Saramago escreveu um poema para mim, a Lídia Jorge, a Amélia Correia etc. Andei muitos anos a bater a muitas portas a dizer “Olá sou a Mísia e não sou só uma franja e uma mini saia”. Acho que não descobri nenhuma pólvora e a única coisa que fiz foi fazer as coisas de uma maneira pessoal, muito genuína e diferente. 

Como é que descobriu que o fado era para si?

A minha mãe era bailarina e a minha avó fazia espectáculos burlescos em Barcelona nos anos 30. Tudo indicaria que eu iria fazer alguma coisa interpretativa e o fado era a minha música do quotidiano na minha infância no Porto. Eu não sou tão de fora como às vezes possa aparentar. Durante três ou quatro anos, passei muitas noites nas casas de fado do Porto a cantar como amadora. Aos 16 anos comecei frequentar a Taberna São Jorge, e ia aprender e ouvir. Na Taberna São Jorge actuava a Beatriz da Conceição, que para mim é uma deusa. Não sou tão “outsider” como se possa pensar.

O que é que o fado lhe dizia?

Não gosto de todos os fados, e naquela altura era muito critica. Aproximei-me através dos fados mais filosóficos e depois comecei a gostar mais de fados populares, com letras mais simples e mais descritivas. Lembro-me que a primeira vez que cantei fado, nenhum dos guitarristas sabia a canção que queria cantar. Começou logo ali a diferença. Mesmo em relação à Amália, quase toda esta nova geração a quem chamam de filhas de Amália, começa por gravar coisas desta artista, vestidas como ela, com as saias rodadas e tal. Eu fiz ao contrário. Fiz um disco que se chama “Para Amália” aos 25 anos de carreira, depois de ter feito o meu trabalho. Parecia-me como se estivesse a usar uma coisa que não era minha. Sou muito territorial. Por isso foi mesmo uma prenda para Amália, mas já depois de ter feito o meu caminho, com os meus colegas e com os meus músicos.

Como foi fazer esse disco?

Foi muito interessante porque não estava a fazer um disco para mim, só com as coisas que gosto da Amália. A Amália é um diamante com várias faces, podemos mesmo falar das Amálias. Aliás, era esse o nome que inicialmente queria dar ao disco. Foi muito interessante porque fiz, não só repertório amaliano como achei que era bonita a ideia de oferecer inéditos à Amália e, desta forma, oferecer uma coisa a uma pessoa que já morreu. É um disco duplo em que uma parte é só com piano porque a Amália ensaiava muitas vezes ao som de piano e só depois passava para as guitarras. Portanto, há esse piscar de olhos à maneira de ensaiar. É um disco feito com muito respeito. Foi muito difícil escolher o repertório e até costumo dizer que canto a “F word” – folclore, que é uma coisa que gosto imenso de ouvir, mas que nunca pensei vir a cantar.

Tem uma canção com o Iggy Pop. O que ouve além do fado?

Não ouço muito fado. Ouço muito música clássica porque a minha mãe era bailarina. O Iggy Pop tinha feito um disco em francês, o “Aprés”. Foi por causa disso que o convidei para fazer aquele tema, “La Chanson d´Hélène”, que faz parte da banda sonora do filme “Les choses de la vie” ne Claude Sautet. A versão original era cantada por Michel Piccoli e Romy Schneider. É um tema mais triste do que o fado mais triste. É uma letra incrivelmente triste. Quando pedi ao Iggy Pop para me acompanhar pensei que o não era garantido e resolvi pedir na mesma. Ele estava a gravar um disco, mandei-lhe a versão original e gravei a versão com a minha voz. No dia seguinte respondeu-me que aceitava.

Esteve aqui para ser acompanhada pela Orquestra de Macau e por instrumentos chineses.

Já estava habituada a tocar com orquestras. Mas aqui tive que ter alguns cuidados. Os instrumentos são diferentes e eu vinha cheia de curiosidade e ilusão, e não estou nada defraudada. Escolhi um repertório especial que pensei adaptar-se a estes instrumentos. Escolhi fados que têm melodias muito bonitas e que podem brilhar com este tipo de acompanhamento.

Também faz teatro pontualmente.

Sim. Não sou actriz, e mesmo no fado não sou uma cantora. Sou uma voz intérprete, não sou uma voz performance. Aliás, eu cuido pouco a voz. A voz é um instrumento e não é a minha finalidade ser uma boa fadista. A minha finalidade é falar da vida e o fado é um instrumento cultural que utilizo para o fazer, para falar do que é a fragilidade de viver. Sempre fui uma voz personagem. Às vezes sei que vou dizer uma frase e que se a mudasse podia sair mais perfeita, mas ela sai como a vida e é isso que interessa. Se sai a voz raspada, olha que bonito que saiu. Os meus músicos brincam muito comigo porque estou sempre a dizer “não me digam que isto é bonito” e eles respondem que saiu muito mal que não é nada bonito. O fado não tem de ser bonito, não tem de ser perfeito, tem de ter força tem de ter uma ligação à vida que é o que me interessa.

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