Linguagem II

Noite de inverno
Georg Trakl

 

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando a neve dá na janela

Longamente tocam os sinos.

A mesa está pronta para muitos,

E a casa está bem arrumada

 

Alguns chegam à porta,

Pelos caminhos sombrios da peregrinação.

Dourada floresce a árvore das bênçãos,

O suco fresco que vem da terra.

 

Caminhantes entram em silêncio.

O limiar petrifica a dor.

Aí, reluzem num clarão puro

Pão e vinho sobre a mesa[1]

 

“A linguagem designa o tempo de uma noite de inverno. O que é este denominar […] Denominar não distribui títulos. Não emprega palavras. Chama à palavra. Chamar traz o que é chamado por si a uma proximidade. De igual modo, esta aproximação não torna o que é chamado disponível numa região mais próxima do presente, para aí o acolher. O Chamamento chama, de facto.Ele traz à proximidade o que é chamado. […] Ele traz o presente do que não tinha sido chamado até então a uma proximidade. Mas enquanto o chamamento convoca, dirige-se para o que foi chamado para o trazer. Para onde? Até ao longe, onde o que é chamado permanece ainda mas na sua ausência.“ (18)

As formulações de Heidegger, em “A linguagem (Die Sprache)”, não são as mais fácil e directamente inteligíveis. Não são óbvias. A linguagem não é expressão, mas é chamamento. A linguagem não é a actividade que sincroniza eventos, espectadores, relatores e ouvintes, como no exemplo de Quine a respeito do arunta, uma língua desconhecida, com a palavra “gavagai”. Quando um coelho é avisado a passar, um nativo pronuncia a palavra. O antropólogo que não conhece a língua, reage ao coelho que passa: pode ser: “comida”, “caça”, e para além de outras hipóteses: “parte de coelho”, “coelho” ou “coelhidade”. A linguagem transforma o que é visto como facto ocorrido num acontecimento de sentido. Há significado. Não, factos. A referência é o que é em vista do sentido interpretativo. O horizonte da linguagem é a atmosfera universal do humano. Cada um de nós não é apenas uma biografia num tempo de esperança de vida. Somos cada um de nós à escala mundial. Melhor, existimos à escala universal implicados em todas as gerações passadas e futuras, que constituem cada humano. Este é o nosso “espaço lógico”. Por outro lado, a linguagem não se limita a expressar o que efectivamente acontece na realidade, no modo indicativo, seja passado, presente ou futuro. O que é, ontologicamente, não é apenas o que está disponível, se apresenta e é visto. O que não é, ontologicamente, não é o que não aparece não está visto, nunca aparece. O que aparentemente não aparece pode surtir um efeito anónimo. Pode ser uma reacção traumática a um acontecimento passado que é apagado da memória cognitiva mas que nos trabalha a partir do seu interior, nos faz ser quem fomos. Pode ser todos os sonhos destruídos que nunca desaparecem mas nos fazem viver uma vida com a possiblidade perdida da primeira vez de todas as primeiras vezes ou como dizem os românticos um amor infeliz.

A linguagem fala a partir do horizonte do universal humano a constituir a sua abertura na tentativa de obter inteligibilidade e dar sentido ao que acontece. O modo da língua falar não é o de fazer a reportagem do indicativo, do que é representável, do que efectivamente acontece. Não é a expressão representativa da realidade interior daquilo para o que nos dá, das ideias que temos, dos sentimentos que vemos nascer em nós. Nem apenas da realidade exterior, quando a referimos meteorologicamente ou para saber a que dia da semana estamos. A linguagem fala para além dos factos, refere sentidos. O seu elemento é a vida. O seu modo é o condicional, o irreal do que poderia ter sido e não foi e do que não poderia ter acontecido e foi mesmo o que aconteceu. O nosso elemento transcende o indicativo e projecta-se para o futuro em que pode ser, quando acontecer o que gostaríamos que acontecesse, quando a vida será como gostaríamos que fosse. Ou então momento quando estivermos aliviados da existência. É também uma possibilidade projectada no futuro.

Obs.: Denominar, dar nomes, designer, chamar. Trazer à presença, afastar da presença, não falar ou falar sobre alguém ou alguma coisa pode corresponder ao querer ou não querer lembrar-se de alguém. A revogação, o chamar o passado, a provocação, a chamada no presente, lembrar para o futuro, o que se chama do passado e se apresenta como o que virá a ser. A lógica da expressão é completamente diferente porque está alicerçada numa lógica de causalidade e portanto de presença ou então na relação entre interior daqui para aí ou exterior de lá para cá, quando o que se passa é no próprio comportamento da acção: faz favor? O que pretende? O pedido, a súplica, a interrogação, o comando. Nem sequer se dá quando há relações pragmáticas quando temos de ir a sítios tratar de assuntos particulares com alguém. A linguagem também não é reflexiva nem se reduz à palavra, embora a palavra seja a sua condição inalienável. Nem o que diz é o indicativo mas pode ser o possível, a ficção, a biografia e o futuro a haver mas no interior das veleidades. A linguagem pode dizer o impossível, o que não se aguenta, ressuscita mortos com quem nos faz conviver mais intensa e dramaticamente do que com qualquer pessoa viva: amores abortados, vidas interrompidas.

No chamamento, há um convite. O convite convida as coisas a aproximarem-se dos seres humanos e a serem compreendidas no seu sentido como coisas. Não como factos. A queda da neve, o anoitecer, o inverno não são factos. Esses acontecimentos estão impreganados pela própria linguagem. São dizíveis no que são meteorologicamente, na hora do dia e na estação do ano. Mas existem num acontecimento conjuntamente com o ser humano no horizonte universal onde acontecem como sentidos.

“A linguagem do poema traz as pessoas sob o céu que escurece ao anoitecer. O som do sino à noite traz os mortais enquanto mortais diante do divino. Casa e mesa ligam os mortais à terra. […] Este fazer e deixar permanecer da reunião faz das coisas as coisas. […] Na nomeação, estas coisas são chamadas na sua essência.” (20)

Nós existimos num horizonte estrutural que Heidegger identifica como o espaço intermédio, o meio intermédio. Não nos encontramos como sujeitos à janela do mundo a espreitar ou a assistir ao que acontece. Não somos polarizados pelo mundo como objecto. Antes, sujeito e objecto existem na relação intrínseca entre um e outro. O sentido da relação entre um sujeito e um objecto é cognitivo ou teórico. Mas este não é o único. Também a teoria nos implica a nós como sujeitos e ao mundo e às outras pessoas num espaço interior.

“O meio de duas coisas é designado pela língua: o espaço intermédio o espaço “entre” (“das Zwischen”). A língua latina diz: “inter”. Corresponde-lhe o alemão “unter”. A interioridade de mundo e coisa não é uma fusão. A interioridade reina apenas, onde o interior, mundo e coisa, puramente se separam e permanecem separados. No meio de dois, no entre do mundo e coisa, no seu “inter”, neste “entre” reina a fissura.“ (25).

Mas é a dor

“que se metamorfoseia em pedra não se endureceu no limiar para se fixar nela. A dor como dor manifesta-se e apresenta-se duradoura no limiar. […] A dor é a inserção da fissura. A inserção é o limiar. Ela suporta o entre, o meio entre os dois que se separaram. A dor insere a fissura da diferença. A dor é a própria diferença.” (24)

A dor não é um fenómeno subjectivo. Pode acontecer no corpo ou na alma. A dor é uma realidade não anulável. Sente-se numa das suas dimensões de tal sorte que faz implodir e filtra toda a vida, sem apelo nem agravo. Custa. Dói, isto é, faz doer. Nos caminhos da peregrinação, encontramo-nos todos. Ou na via sacra da teologia da cruz ou nos caminhos contemporâneos que tornaram o planeta terra à quase ausência de distância. Nenhum animal peregrina. Só o ser humano se pode deslocar na forma de uma peregrinação, de uma viagem, até sem se deslocar. O limiar da porta é o portal de entrada para uma outra dimensão. Chega-se a casa onde se é acolhido. Mas só se chega desta maneira a casa com a percepção da dificuldade da dor que é fazer o caminho. Ou antes, o caminho do tempo usa o humano para o seu próprio acontecer. Mesmo sem nunca sairmos do mesmo local, sem sairmos do próprio corpo, o tempo faz o seu percurso em nós mesmos. Há silêncio, porque o que acontece não tem referente. O pão e o vinho sobre a mesa não são comida e bebida, não são meros alimentos. Estão sobre a mesa de uma casa bem arrumada. O encontro entre o peregrino e a mesa permitem um chamamento. Não apenas do passado, da infância, das refeições em família, nem da importância da refeição na vida de uma família, no quotidiano e nos dias de festa. O que é invocado é convocado da ausência: é o próprio clarão puro. É o brilho do que aí acontece que alegoricamente metamorfoseia simplesmente tudo para fora do âmbito estrito da realidade factual e para a dimensão do significado.

[1] Winterabend

 

Wenn der Schnee ans Fenster fällt,

Lang die Abendglocke läutet,

Vielen ist der Tisch bereitet

Und das Haus ist wohlbestellt.

 

Mancher auf der Wanderschaft

Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden.

Golden blüht der Baum der Gnaden

Aus der Erde kühlem Saft.

 

Wanderer tritt still herein;

Schmerz versteinerte die Schwelle.

Da erglänzt in reiner Helle

Auf dem Tische Brot und Wein.

 

TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 58.

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