Linguagem I

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]um dos seus textos icónicos sobre linguagem poética (A linguagem “Die Sprache” in Unterwegs zur Sprache, 9-33, 1959), Heidegger “destrói” o seu sentido habitual ou, pelo menos, o sentido que Heidegger determina como o habitual na tradução ocidental.

 

  1. A) A primeira qualificação essencial da linguagem é ser uma forma de expressão. B) A segunda é ser uma actividade. C) A terceira implica a linguagem no próprio horizonte configurado pelo humano.

 

A tese positiva que Heidegger diz ser a que resulta da inteligibilidade intrínseca da linguagem é formulada numa tautologia: “Die Sprache spricht” impossível de verter directamente para português: “a linguagem fala”. À letra seria a “linguagem língua”. A tese que subjaz a este enunciado procura mostrar como a linguagem fala a partir do ser do humano, do acontecer não anulável em que de cada vez desde sempre já somos. A língua diz, enuncia, permite falar, conversar. E na verdade, já à partida em cada um de nós que diz “sou”. Cada um de nós existe numa conversa de si para si sobre si. Proferimos em sons o que queremos dizer. Mas também em interjeições, inflexões e pausas. Muitas vezes também não emitimos som algum. Outras vezes falamos sozinhos. No sonho ou na realidade, na ficção ou na lembrança agradável ou desagradável do passado, na relação com o futuro a haver com e sem esperança, com pessoas ou sozinhos estamos sempre numa atmosfera de linguagem em que se diz e há coisas dizíveis, se sabe o que se quer dizer ou não se consegue dizer o que se sabe. A) A linguagem é uma forma de expressão. De acordo com Heidegger não há nada de errado com esta tese. Mas fica aquém de uma determinação constitutiva. A argumentação parece ser retórica. Há um conteúdo a decorrer no interior de cada pessoa, seja mental, anímico ou espiritual. Ocorrem-nos ideias, vêm-nos à ideia pensamento, temos lembranças, fazemos previsões, dizemos o que vamos fazer, antecipamos situações. A linguagem formula uma expressão desses acontecimentos interiores, que mais ninguém vê no momento em que são tidos, num nível de representação subjectivo. Por outro lado, há conteúdos do mundo real que vêm a uma expressão. Como está o dia, quem vemos à nossa frente, percursos tomados, sítios onde vamos, tarefas que executamos, funções que desempenhamos, livros que lemos, cafés que tomamos, etc., etc.. A linguagem exprime conteúdos reais, pessoas reais, circunstâncias, situações com agentes reais. A crítica visa fundamentalmente um esquema de correspondência e de espelhos ou de reflexos que tem na base substâncias e um sistema de traduções. A diferença entre um em si e a referência ou a referência e um ou mais sentidos implica uma abertura à compreensão que dá ou reteria inteligibilidade ao facto de a linguagem fora do âmbito de correspondência “querer dizer algo de si ou acerca de outrem, acerca das coisas que não são o próprio”. E tudo de tal forma em que a expressão está já constituída- como de resto todas as impressões e os modos como se nos inculcam e o estado em que nos deixam- no ser desde sempre já da existência humana num “espaço lógico”, “numa atmosfera linguística”, na relação de compreensão que ganha inteligibilidade ou não sobre o que quer que seja inclusivamente sobre si.

  1. B) Ser uma actividade é outra das determinações da linguagem. Não apenas no sentido linguístico em que podemos obter denotações dos factos de que as coisas são o que são numa descrição ao pé da letra e objectiva. Mas também podemos visar sentidos por conotação, indo até um sentido figurado ou literário, não imediato e não factual, pelo menos aparentemente. Há enunciados declarativos que resultam de uma pergunta. Há respostas a pedidos, desejos formulados, ordens recebidas, vozes de comando que estão numa tensão imperativa. Há perguntas que se fazem directa e indirectamente. Todo o sistema verbal modal, o aspecto perfectivo e imperfectivo, os tempos, as vozes está implicado numa estrutura muito mais complexa do que aparentemente se possa compreender. No fundo, a actividade resulta no que se põe em prática à luz da linguagem. Há tanta expressão de linguagem na explicação de um poema ou de um teorema como na actividade de fazer café, acender e apagar luzes, descer e subir escadas, ir e vir, partir, ficar e regressar.
  2. C) O humano tem uma relação com a linguagem não no sentido em que se exprime com a linguagem, diz-se a si próprio, diz de si ou negativamente não tem palavras que não encontra para o fazer, não consegue imaginar-se no lugar do outro, não sabe como é que o outro se encontra. O humano é tido pela linguagem. A sua atmosfera é a linguagem no sentido em que está sob pressão de esclarecimento e explicação de si para si sobre o que acontece na vida real, na realidade objectiva e sobre aquilo para que lhe dar. A língua é o meu de resolução de todos os problemas que lhe são postos, questões levantadas. Só dela virá sossego e é ela que traz toda a inquietação. Mas ela não diz apenas o que está já aí, que possa ser espelhado pela formulação linguística. A linguagem põe de pé o futuro, projecta resultados, antecipa situações, faz prognósticos, dá previsões, permite-se predizer o que é constituído pela própria potência da linguagem. A linguagem chama, convoca, apresenta, esquece, faz desaparecer.

 

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