h | Artes, Letras e IdeiasNietzsche Amélia Vieira - 15 Mai 201816 Out 2018 [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ui para Lille. Lá, ao que parece, existe a melhor Faculdade de Filosofia do país, no rasto da estudante que só lhe interessava, afinal, saber dele: está muito bem, por mim nem uma vida chega para tão grande empreendimento. Foi pelos vinte anos que também li a sua poesia numa maravilhosa e única, creio, tradução de Paulo Quintela e até hoje ainda não tenho uma dimensão exacta do choque provocado. Era assim como se não tivesse tamanho… oxigénio, aquilo era de uma beleza que só com iniciação poderia ser completada. A Teologia pareceu-me a mais directa passagem para ele, independentemente da esfera gnóstica parcialmente oculta nas suas paragens. Como naquelas máximas: não pronunciar… em vão… sim, eu também não pronunciava o nome dele, no entanto, permanecia em mim uma inquietação de fogo, aquela chama que me prostrava logo que chegava mais perto. Que a beleza é terrível, já Rilke o pronunciara, mas nem sabemos a dimensão de tanto horror dentro do próprio fascínio. Mais tarde, Schiller ajudar-me-ia a repor aquela opressiva sensação, numa obra chamada «Textos sobre o Belo, o Sublime e o Trágico», e por ele consegui de novo adentrar-me. Mas, se é certo que um só homem não justifica aparentemente cinco anos de estudos, mais certo é que as paixões juvenis podem acabar depressa. O que pode ser mais próximo disto? Um curso de Vinhos, Enologia. Eu entendo todas as formas de desistência. Até entendo que haja maldições que passam de geração para geração. Demorei-me a imaginar como seria este ser, em que contexto nasceu, o que seria importante para que tal pessoa fosse possível, quando nasceu, se tinha astro – astro tinha, era de Outubro, 15, Balança, portanto mais intrigada fiquei. Pastores protestantes, aquelas mulheres, mãe, irmã, mas nada disto resolve a indagação. Há naquele homem uma força que sentimos e uma delicadeza que nos surpreende e seduz, há até uma monstruosa galvanização de interditos, uma exasperada riqueza cósmica que não é fácil de expressar seja por quem for. Assim, dele, sempre guardei temor. O que leva um filósofo da sua estirpe a escrever aquela poesia – que posso melhor avaliar do que a sua carreira de filósofo – pois que geralmente são até posições que não raro se antagonizam. E é o Nietzsche poeta que me interessa aqui ressalvar. E mais, é destas matérias e cursos tão em desuso que nos interessa esclarecer pois que sem eles pomos em causa a nossa própria acção civilizadora. Lembro-me sempre de Lou Salomé e do primeiro encontro entre ambos numa Catedral onde disse isto: de que estrelas tão belas caímos!? Lou achou aquilo muito pomposo e sorriu; depois, ele no grupo foi um complexo elemento tendo-se apaixonado por ela, o que o fez afastar-se de forma um pouco revanchista. A sua voz era estranha e mesmo os seus alunos mencionavam tal incómodo mas sem dúvida que a sua presença neste grupo foi das coisas boas que o mantiveram, não havendo no entanto uma opinião consensual ou debatida a seu respeito entre todos. Ele continuava em tudo demasiado formal: este homem, que enlouquecerá, estava trajado de uma protecção que parecia não o identificar. Começou como filólogo, foi crítico cultural, e até compositor, mas é a sua dicotomia que o toma, Apolíneo versus Dionisíaco e a debandada da morte de Deus, o seu niilismo que muitos insistem em dizer que não é, e toda a escrita que raia o paranormal. Estudar Nietzche, reconheço que seja até um exercício que requeira grande estofo moral e uma vida de quietude, pois que tudo ali está em chaga, no limite, na transcendência e no descrédito profundo da sua própria exaltação trágica. E se a música o faz ainda compositor prussiano, a inimizade com Wagner torna a melodia mais patética. Desiludido e ferido, ele arrefece à medida que passam os anos. Controverso, brilhante, e por fim frágil, a sua saga é sem dúvida a de um grego, a do antigo professor de crítica textual. Mas aqui releva-se o poeta imenso que foi, a natureza alquímica de uma danação, a beleza indómita e a incontornável grandeza da sua alma. Ele afirma que o seu estilo é uma dança, já em Zaratustra o reafirmara: Vede como me sinto leve, vede voo, vede sobrevoo, vede! Há em mim um Deus que dança! Ele é consciente da enorme distância que o separa de tudo, de todos, e escreve desassombradamente, intensamente, sem êxito visível pois que pensa que a distância a que se encontra o invisibiliza. Ele não pára de trabalhar arduamente, da forma que sabe, e colapsa, talvez de esgotamento nervoso, enlouquece, eletrocutado pela energia que transporta. Sabe-se vindouro, muito para lá do tempo da sua marcha. Mal interpretado mais tarde por aqueles que não sabem distinguir, por esses maus artistas que desejam um palco maior, e associado a afrontas das quais o seu sentido visionário teria desconhecido o grosseiro equívoco: tampouco me agradam esses novos especuladores em idealismos, os antissemitas que hoje reviram os olhos de modo cristão-ariano-homem-de-bem, e através do abuso exasperante do mais barato meio de agitação, a afectação moral, buscam incitar o gado de chifres que há no povo. Vontade do Poder e a roda gigante do Eterno Retorno guiam alguma da sua marcha como relâmpagos, e o que faz a família não nos deve interessar, se um homem se encontra em registos tais. Ainda hoje nos perguntamos quem pode acolher gente assim em caso de verdadeiro colapso, para onde irem, quem os tratará. Que entendem os outros deles? O que lhes aconteceu ao certo? Vemos como é profunda não só a eternidade mas também o abismo. Por isso fiquei de certa forma aliviada quando Lille terminou nos planos peregrinos de uma jovem mulher que deve sem dúvida dedicar-se a outras coisas. Não há cursos sobre Nietzsche, seria como ir estudar os Livros Sagrados em frases exegéticas, uma vida só não dá para isto. Sem este episódio, também eu, que não falo do que não sei, e pondo-me sempre na posição de que sei pouco, ousaria pronunciar em vão tal nome. Ressalve-se «Poemas em Prosa» como a mais impressionante força poética que me foi dada sentir, sentir… não sei se isto é sentir, estamos para lá das sensações, é certamente aqui acrescentado ao registo do entendimento uma área desconhecida que perdura como se antevíssemos mais Homem para lá das barreiras da sua própria definição. Lille fica para trás, ele, que tanto amava França e Itália e teria certamente esse fundo meridional que tantos de nós não soubemos ver. Era esse meio-dia a sua hora, o tempo sem sombra, o seu desassombro. A noite para mim?… Mantém-te forte, meu valente coração! Não perguntes: por quê?- É o poema infindo de um Pastor cheio de altura, quando desce traz os decálogos, mas o cume é a sua Casa, a sua mais notória natureza.