Pobre Atmosfera

[dropcap style=’circle’] J [/dropcap] ohn Berger comparou uma vez o espaço do atelier com um estômago, ainda que o processo da arte seja o inverso daquilo que se passa com o sistema digestivo – o que entra é merda, o que sai é uma oferenda.

Agrada-me muito a ideia que isto nos sugere: a arte é a inversão do processo digestivo. Corolariamente, creio que aonde se produz a oferenda advém o acontecimento. Aquele que importa e que amplia o âmbito das relações e, melhor, fideliza.

Situamo-nos aqui no oposto do espírito que se retractou nas latas de Piero Manzoni, com os dizeres: Merda de Artista.

Manzoni expôs esta sua “invenção” em 1961, um ano antes de Warhol nos propor as suas latas de sopa Campbell.

Nessa altura os laços sociais já não assentavam em “imperativos categóricos” mas antes em “imperativos atmosféricos”. As ideias andam no ar, não obstante é difícil não suspeitar que o americano, informadíssimo, não haja afinal reagido à provocação do italiano: para haver muita Merda de Artista haverá combustível melhor que o feijão?

Disto não nos falou Arthur Danto.

Posteriormente, muitas das 90 latas em que Manzoni defecou explodiram, resultado de corrosão e de gases em expansão. O que teve lugar uns anos antes da lataria que se tem feito rebentar nos céus e nas cidades da Síria reduzindo um país a uma mortalha – embora vivamos manifestamente sob influência.

Diverte-me imaginar que o Manzoni chega às fronteiras do Paraíso com as suas latas e tenta enrolar São Pedro, que controla as mercadorias:

São Pedro, posso entrar?

Que traz consigo?

Merda de artista.

A própria?

Precisamente.

Não creio que precisemos dessa merda…

Foi o que me deu fama e notoriedade!

Quantas latas são?

Noventa.

Cagou pouco.

Quantas teria de fazer?

Pelo menos o seu peso em biomassa, essa quantidade ao menos definia-o… Com tão baixa produção mostra-se um homem hesitante e sem capacidade de auto-crítica…

E o Manzoni voltava a nascer, afocinhado num curral de porcos.

Depois de Manzoni é fácil intuir que se hoje fizéssemos uma exposição de 90 latas com a efígie dos actuais líderes mundiais nos rótulos toda a gente adivinharia o que conteriam as latas.

O design das latas é que mudou entretanto: é fusiforme.

Porque é este o maior orgulhoso do homem, EU DEFECO, LOGO SOU!

 

16/04/18

Na longuíssima conversa entre Tobie Nathan e Catherine Clément que se fixa em Le Divan el le Grigi, livro que recomendo vivamente, refere-se esta ao enterro de um actor na Índia «especializado nos papéis de Deus».

Aí está um ofício que me convinha.

Enquanto tal sorte não me chega eis-me embaçado com as notícias do mundo, alheio e próximo, em estado de torresmo mental.

O ataque da Síria, houve. Dois presidentes da coligação precisavam absolutamente de reavivarem um inimigo externo que desvie a atenção das borradas internas, o terceiro, coitado, julga-se De Gaulle.

Nem se trata da legitimidade de defender as populações contra ataques de armas químicas, mas de tudo ser pretexto para brincar aos vídeo games. Como é fácil pôr a mão no gatilho quando conhecemos os mapas mas o nosso corpo desconhece o território.

Os pretextos da guerra são sempre hipócritas dado que denunciam o tanto que não se fez no devido tempo, são sempre respostas ao fundo da escada, passada já a ocasião. Um ditador é a víbora que não se matou no ovo.

O resultado é a inescapável hecatombe das cidades e a derrocada dos mitos. Que Deus sobreviverá às ruínas da Síria, que não se assemelhe a um caudaloso e freático rio de caca?

Seria para isso que servia a cultura: para nos alegrar com a criatividade dos vivos e fazer respeitar os mortos. Voltámos a um tempo sombrio em que queremos sepultar a própria memória, reduzi-la a pó. Cobrimos o respeito devido aos mortos com a infâmia.

Karen Blixen, num texto anómalo ao seu percurso de narradora, “A Verdade e a Política”, sustentava que uma das características da condição humana é a nossa capacidade para suportar praticamente tudo; podemos afocinhar nas abjecções mais tortuosas sem perder a alma, desde que tenhamos uma perspectiva de futuro e uma narrativa integradora do que está a acontecer. Agora o que não suportamos é o absurdo.

O absurdo instalou-se no mundo.

Vou-vos dar dois exemplos. Um universal, outro local.

Uma das coisas que o presidente Reagan fez, mal chegou à Casa Branca, foi mandar retirar os painéis solares que lá estavam pois considerava que a energia solar não traduzia “o espírito americano”, que o petróleo e o carvão representariam melhor.

Não impressiona que em 2018 o novo presidente americano considere igualmente o petróleo e o carvão moedas irrenunciáveis do “espírito americano”, sem atender às vitais necessidades de mudança para fontes de energia menos poluentes e sem demonstrar a menor capacidade de aprendizagem?

Eis um sinal de “identidade doentia” que chega a uma absurdez montanhosa e, para além de cretina, estúpida.

O outro mau exemplo foi-me contado hoje. Um médico do Hospital Central de Maputo evita estar fora nos fins-de-semana. Porque quando passa dois, três dias fora do serviço as enfermeiras, se as famílias dos doentes não lhes “pagam por fora” (o que é de regra por causa da pobreza), deixam imediatamente de substituir o soro do doente e de seguir as prescrições, farejando a comissão que as funerárias lhes pagarão.

As autoridades não desconhecem – os rumores sobre esta monstruosidade corriam na cidade mas só agora o vi confirmado por um clínico de dentro – mas mais um pobre morto é menos uma parcela na estatística da pobreza e além disso arredonda as contas de uma classe insatisfeita, sem haver necessidade de lhe aumentar os ordenados.

Se conhecerem algo mais cínico e perverso que isto, contem-me, um escritor encontra sempre um viés. Ou calem, porque a parte humana do escritor não quer ouvir.

 

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