Rota das Letras | O lugar da família Assumpção no romance de Isabel Valadão

Em “O Rio das Pérolas” lê-se a história de Luísa e Mei Lin, duas mulheres chinesas abandonadas à nascença pelas famílias que acabam por ter dois percursos de vida diferentes, sempre com a sobrevivência como força motriz. Convidada do festival Rota das Letras, que chegou ontem ao fim, a autora, Isabel Valadão, contou como a ligação à família de Carlos D’Assumpção a ajudou a escrever o romance

 

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oram dois anos intensos, em que o corpo existiu em Portugal mas a mente e o coração estiveram de forma permanente em Macau. Esse foi o tempo que Isabel Valadão, licenciada em História da Arte, demorou a escrever “O Rio das Pérolas”, o romance sobre o lugar onde morou durante três anos mas que retrata uma outra época, a de uma sociedade onde meninas eram abandonadas à nascença apenas por carregarem consigo a condição feminina. Cuidadas por freiras, acolhidas por ordens religiosas, estas meninas acabariam por se dedicar à prostituição, a servir em casas de famílias macaenses, a serem sujeitas às boas maneiras para que, um dia, o casamento com homens ricos pudesse ser a salvação para uma vida difícil.

No último dia do festival literário Rota das Letras, Isabel Valadão esteve no edifício do Antigo Tribunal a falar do seu romance que fala da Macau dos anos 40 e 50. Viveu no território entre 983 e 1985, tendo conhecido muitas famílias macaenses. A de Carlos D’Assumpção, ex-presidente da Assembleia Legislativa e um dos mais importantes juristas do território, foi fundamental para o seu processo de absorção da cultura local.

“A família Lobo Vicente [retratada no livro] foi inspirada em famílias que conheci aqui, famílias antigas. A família do Carlos D’Assumpção deu-me muito conhecimento de como funcionavam as coisas”, revelou ontem. “A família de Carlos D’Assumpção ajudou-me a perceber como funcionava uma família macaense e luso-portuguesa. Além da origem chinesa também tinha outras origens, havia sempre uma grande mistura de sangues. Não gostavam muito do sangue chinês, porque achavam que ia manchar um pouco o sangue português, no qual tinham muito orgulho.”

Isabel Valadão só agora regressou a Macau, e notou diferenças em relação ao passado histórico e aquele que presenciou. “Tenho visto a comunidade chinesa muito mais aberta e com uma abertura grande às pessoas, embora continuem a não falar português. Penso que está tudo diferente.”

A importância da mulher

Antes de escrever sobre Macau, Isabel Valadão escreveu sobre personagens reais, históricas, da Angola onde viveu a partir dos seis anos e até 1976, na altura em que se mudou para Portugal. Quando chegou a Macau esperava encontrar um pouco de África, mas não conseguiu, apesar de se ter deparado com um ambiente exótico.

“Quando chegamos a Macau encontrei uma realidade muito diferente da que estava à espera. Pensava encontrar um bocadinho de África quando cheguei, mas encontrei outra realidade muito exótica, muito sui generis. Foi um choque grande no início, porque não estava bem habituada à civilização chinesa. Mas a cidade começou a cativar-me.”

Desde que se licenciou, aos 49 anos, que a autora se tem dedicado a escrever sobre mulheres. Identifica-se com elas, mas não põe de parte escrever um romance onde os homens sejam protagonistas.

“Talvez me identifique mais com o papel das mulheres, ou porque encontre histórias interessantes. Talvez seja capaz no futuro de encontrar um personagem marcante masculino. Sim, acho que sim [que as mulheres estão perdidas na história].”

“Normalmente vou à história buscar personagens reais, que existiram, e estas personagens são reais, existiram. A Luísa foi de uma família de Macau. Nesse estudo sobre as ordens religiosas em Macau e as órfãs encontrei dois casos específicos. Foi nelas que me inspirei, dei outros nomes, e ficcionei de outra maneira. Em relação a Angola também fui buscar personagens históricas e são essas que eu desenvolvo na minha ficção, que eu gosto de chamar de ficção histórica”, acrescentou a autora.

A escrita de romances apareceu tarde na vida de Isabel Valadão. “Sou formada em História da Arte e só comecei a escrever depois de me licenciar. Sou uma escritora tardia. Mas fiquei sempre com o gosto pela investigação histórica e comecei a gostar de escrever.”

Escrever o “Rio das Pérolas” surgiu quando a autora de deparou com um artigo sobre a sociedade dos anos 40 e 50. O nome do livro já existia desde sempre. “Comecei a ler todas as revistas culturais de Macau, aprendi muito mais do que quando cá tinha estado. Surgiu-me a ideia da história porque encontrei um artigo que me impressionou muito, sobre o papel da mulher chinesa em Macau e na China. Encontrei nesse artigo o que é que acontecia às órfãs em Macau. Na China eram afogadas à nascença. Em Macau eram abandonadas à porta da Santa Casa da Misericórdia e depois esse papel começou a passar mais para as ordens religiosas. A sua vida era ditada por aquilo que conseguiam ou não fazer.”

Existia então as noivas portuguesas, meninas chinesas que acabavam por chegar às comunidades portuguesa e macaense da altura. “Muitas enveredavam pela prostituição, e havia o fenómeno das noivas portuguesas. As órfãs chinesas que eram educadas pelas freiras e que acabavam por fazer um percurso e ser integradas na comunidade macaense, como afilhadas para servir, mas muitas delas depois casavam com portugueses que vinham da metrópole.”

“Fui deixar a Mei Lin”

No regresso a Macau, tantos anos depois, Isabel Valadão foi aos lugares que leu nos artigos históricos e naqueles que conheceu na década de 80. Hoje o Hotel Central está em obras, os edifícios do Porto Interior estão degradados. Ainda assim, a autora deambulou pela avenida Almeida Ribeiro, subiu até ao Seminário de São José. “Ontem fui deixar a Mei Lin”, confessou no Antigo Tribunal.

O curso de História de Arte levou-a a ser descritiva nos seus livros, quase como por acaso. “Através disso comecei a adquirir as ferramentas para o ofício, a fazer investigação. Gosto de caracterizar os ambientes, as pessoas. Sou muito visual, porque eu própria quando estou a escrever, visualizo.”

Escreveu sempre sobre os sítios por onde passou. As suas histórias são aquelas que ela ainda não leu. “Escrevo os livros que eu gostava de ler e acho que os devo passar a outras pessoas, são temas que devem passar a outras pessoas”, rematou.

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