Da medicina antiga II

[dropcap style =’circle’] E [/dropcap] m “Sobre os ares, as águas e os lugares”, texto do corpo hipocrático, lemos a complexidade dos elementos que intervêm no diagnóstico médico. O conjunto de elementos que formam o alfabeto dos médicos: temperatura, alta e baixa, quente, frio, húmido, seco, as diversas fases do dia e do mês, as diversas estações do ano, as idades da vida, sexo, localidade de habitação, naturalidade, mas também as operações que alteram um extremo no outro: aquecimento, arrefecimento, deslocação, alteração da localidade de habitação, mudança da dieta, regime alimentar e actividade física, permite perceber que os factores de análise, diagnóstico e prognóstico de uma determinada doença não se circunscreve a um indivíduo, mas o indivíduo é “visto” num contexto absolutamente complexo e, ainda assim, claro. O interior côncavo do corpo humano, para suar a formulação do médico, contem um sistema “hidráulico” complexo de quatro líquidos fundamentais: a bílis negra, bílis amarela, fleuma e sangue. Há uma mistura que pode ser desequilibrada destes líquidos e não tem que ver com a diferente quantidade com que um líquido está presente no sistema. As quantidades são qualitativas. Mas todos os fluídos, humores ou líquidos do corpo estão sujeitos a condições estruturais que os alteram: aquecem ou arrefecem, fazem-nos deslocar para zonas diferentes do corpo com consequências determinadas. Um dos pontos fundamentais é que depende da “alteração da estação” (“ek metabolês tôn horôn”). A hora em grego não corresponde a 60 minutos. Nem necessariamente ao conceito de estação do ano. É uma qualificação temporal que integra em si dois estados, um de partida que é o que se tem verificado, e outro de chegada, que é o estado no qual o primeiro se transforma. A alteração no interior do corpo humano depende desses factores mais e mais abarcantes e que transformam campos que lhes estão subordinados e nós estamos subordinados ao equilíbrio complexo de tudo o que está envolvido na manutenção e conservação da vida. “Sobre as estações do ano, temos de poder determinar, como é que vai ser o ano, pouco saudável ou saudável. Os sinais são dados pelo ocaso e nascimento das estrelas, se o outono traz chuva, o inverno moderado, se cai uma quantidade moderada de chuva na primavera tal como no verão”. Assim, as próprias regiões do globo que são afectadas diferentemente pelo céu estrelado na sua mudança sazonal produzem seres humanos de compleições diferentes. Mas este não é oponho mais interessante. Se há falta de força de vontade ou de coragem num ser humano, há um elemento atmosférico, fluvial e local a contribuir para que tal aconteça. Se não houver grandes mudanças climatéricas, as pessoas tendem a ser suaves e gentis. Só a exposição a grandes alterações climáticas abala o espírito e estimula a paixão nos seres humanos. São as alterações que sobretudo despertam o espírito no ser humano.

Se percebemos a influência exterior do meio ambiente que nos envolve, do clima, atmosfera e meteorologia e geografia particulares que nos acontecem, percebemos também a dinâmica complexa destes factores transformadores num processo temporal ao longo da vida admitindo alterações ao longo do dia, mês, estações do ano, idades da vida. Mas mais interessante e absolutamente contemporâneo é pensar que a disposição do espírito, a compleição do carácter, o modo de ser, a vida que levamos resulta ou é concomitante a essas mesmas pressões climatéricas.

A análise final seria a de procurar perceber se a partir do interior do ser humano, também não haverá uma contaminação estrutural e intrínseca que altere o sítio em que vivemos, invertendo assim a lógica de subordinação do humano às forças cósmicas.

 

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