Entrevista MancheteJoão Miguel Barros, fotógrafo, sobre a sua exposição no Museu Berardo: “Para ser vista como quem lê um livro” Sofia Margarida Mota - 21 Fev 201823 Fev 2018 É inaugurada hoje, no Museu Berardo em Lisboa, a exposição de João Miguel Barros “Photo Metragens”. São 14 histórias traduzidas em imagens, palavras e vídeo dentro de um projecto que não se fica por aqui [dropcap]O[/dropcap] que é que podemos ver em “Photo-Metragens”? “Photo-Metragens” é uma exposição que é para ser vista como quem lê um livro de short–stories. É uma síntese adequada, penso eu, do que é este projecto que inclui imagem, palavras e vídeo. Trata-se, portanto, de uma exposição que inclui 127 imagens, a maioria em grandes formatos, em A0 e até maiores. A exposição está organizada a partir de 14 capítulos, com um número diversificado de imagens. Uma das particularidades é que cada capítulo inclui um texto ficcionado, de que é parte integrante. Finalmente, um desses capítulos tem também um vídeo de quase uma hora. Esta é a edição de 2018. Quer isto dizer que este projecto está pensado para ter continuidade no futuro. Tenho o propósito de fazer edições da “Photo-Metragens” a cada dois anos, com o mesmo formato e obviamente com estórias diferentes. Sempre com imagem e textos ficcionados, e provavelmente com uma componente maior de vídeo. Algumas das imagens, correspondendo sensivelmente a um/quarto do que será exposto no Museu Berardo, foram já mostradas na exposição que fiz em Fevereiro do ano passado na Creative Macau. Tudo o resto é material novo. Mas mesmo as fotografias que já foram exibidas, foram, entretanto repensadas, e muito apuradas. As imagens que vão ser mostradas em Lisboa são as versões finais e últimas do projecto e não serão repetidas. Como é que surgiu a ideia de contar estas estórias? Surgiu como resposta à ideia politicamente correcta de que as exposições têm de ter uma narrativa. Não é algo com que concorde em absoluto, mas resolvi não contrariar o “destino”… Eu ainda não tenho nenhum projecto temático devidamente estruturado e com dimensão que possa ser mostrado autonomamente. E o honroso convite do Museu Berardo colocou-me um desafio interior, que tive de resolver e que, confesso, demorou algum tempo a estruturar. No fundo, tudo se resumia a dar uma certa unidade conceptual a um projecto artístico assente na imagem, a que eu depois juntei a escrita, e que tivesse alguma “lógica”. O espaço do Museu, bastante generoso aliás, que foi destinado a esta exposição, acabou por ser inspirador do resultado final. E foi a partir daí que cheguei ao resultado da “exposição que se vê como quem lê um livro de short-stories”. Um livro de contos é um conjunto de estórias, com autonomia entre si e que versam temas por vezes muito diferentes. “Photo-Metragens” é um pouco isso. Cada capítulo inclui uma história independente. E penso que é essa diversidade que lhe dá a riqueza do conteúdo. Deixe-me ainda acrescentar o seguinte. Cada capítulo da exposição contém uma estória que pode ter potencial para ser desenvolvido autonomamente. E, depois, seguir um caminho independente. E, provavelmente, isso irá acontecer num futuro próximo em relação a uma dessas short-stories, que tem potencial para se transformar numa long-story. Vamos ver. Como pensou a exposição e a relação concreta com o espaço? Esta exposição foi pensada não só em função do espaço, como não podia deixar de ser, mas também na sua forma de representação. Quem a visitar não irá encontrar apenas imagens presas à parede. Por exemplo, o primeiro capítulo chama-se “Sentido Único” e é, em rigor, uma grande instalação de trinta imagens em formato A2, que estão colocadas no interior de uma moldura de mais de 4 metros de largura por quase três de altura, sendo que as ampliações estão presas em cabos de alumínio esticados de alto a baixo dessa moldura. A solução de imagens suspensas em cabos metálicos finos foi adoptada em mais dois capítulos da exposição. Por outro lado, houve um cuidado especial com a iluminação, que exigiu um estudo detalhado e soluções novas devido às qualidades do papel que utilizo, que é um papel profissional metalizado, mas que reflecte muito a luz. Este papel projecta as imagens de forma diferente do que é normal, mas cria dificuldades acrescidas em relação ao tipo de iluminação a adoptar. Que tipo de histórias nos conta? Encontram-se no conjunto temáticas muito diferenciadas, desde a paisagem ao boxe, ao trabalho nocturno e à sombra dos holofotes, às árvores (que é um tema que me fascina), e ao movimento corporal. Pode dar um exemplo concreto? O capítulo primeiro, “Sentido Único”, que referi, é composto por 30 imagens que são detalhes de um enorme viaduto em Xangai, que tem vários níveis de circulação. Quando se olha para o conjunto a sensação que se tem é a de se estar perante um puzzle confuso de detalhes. Ou seja, a percepção que transmite é justamente a oposta daquela que o título induz. Mas, na verdade, não há na vida sentidos únicos e há sempre a possibilidade de seguir por caminhos diferentes. Outro dos capítulos deu o título à exposição de Macau. Chama-se “Entre o Olhar e a Alucinação” e é composta por um tríptico com uma imagem quase lunar e, depois, a misteriosa silhueta de um cão a olhar para outro. Mas o capítulo que provavelmente poderá chamar mais atenção é o que retrata alguns momentos de um intenso combate de boxe a que assisti em Macau. São imagens fortes. Esse capítulo chama-se simplesmente Homenagem, mas, na verdade, era para se chamar “Homenagem a um Perdedor”, porque se centra num lutador negro do Gana, que perdeu o combate. “Um olhar que possa registar todos os pormenores até à complexidade das coisas, que através de uma minuciosa observação e num exercício de natureza sensível ou intelectual permita que as imagens nos saibam devolver e suscitar afectos e memórias”. Pode comentar esta afirmação? Todos nós vivemos uma vida intensa e complexa em termos visuais, emocionais e ocupacionais. Tudo nos solicita, tudo nos ocupa e, simultaneamente, tudo nos distrai. Quando se faz fotografia o nosso olhar é ajustado e muda por vezes radicalmente a forma de vermos o que nos rodeia. Olhamos em volta e muitas vezes o que ressalta é o ângulo que poderia dar um bom registo, o detalhe que serviria para fazer uma excelente fotografia e por aí adiante. Algumas das imagens da Photo-Metragens são de uma enorme simplicidade. Por vezes são registos de uma certa banalidade. E apenas isso. Mas podem ser, também, uma surpresa porque as nossas permanentes solicitações muitas vezes não nos deixam tempo para esse registar das coisas pequenas que, por vezes, são maiores do que podemos supor. A exposição é com imagens a preto e branco. Por quê? Eu fiz uma opção, que posso dizer incondicional, pela fotografia a preto e branco. Estou convicto de que dificilmente irei alterar este caminho. E ao longo dos anos, depois de muitas exposições já visitadas, de idas regulares às feiras de fotografia, o meu olhar tem vindo a ser treinado, cada vez mais, tornando óbvia a opção pela fotografia a preto e branco. Não tenho nada contra a cor, como é óbvio. Há fotografias e trabalhos a cor fabulosos e que, provavelmente, sem essa opção da cor perderiam alguma coisa. Muitas delas têm justamente como objectivo o contraste que as cores permitem e o efeito emocional que podem transmitir. Mas esse não é o lado que me interessa. O meu problema com a cor na fotografia é que nos pode distrair tremendamente do objecto e da essência do objecto registado. É um outro registo, e que acaba por se sobrepor a tudo. Faça a experiência. Entre num espaço com trabalhos expostos e olhe de forma genérica e abstracta. O que capta em primeiro lugar são as diferenças cromáticas do que tiver à frente, e não as formas retratadas. É, antes, a intensidade dos vermelhos, ou dos azuis, e de outras cores, o modo como essas cores se espalham e ocupam o espaço impresso. Só depois, num segundo momento, e quando se conseguir abstrair ou recompor desse choque cromático, é que consegue entrar na essência da imagem. Isto se a essência não for, obviamente, o tal choque cromático porque, nesse caso, fica por aí! A minha opção pelo preto e branco é claramente uma opção pela substância e pela prevalência do conteúdo que normalmente só a fotografia a preto e branco permite. Onde recolheu as imagens? Foram escolhidas um pouco em vários sítios. Mas a maioria é da Ásia e de Portugal. O que diria da mediatização/banalização da fotografia na actualidade? A sua pergunta seria um bom pretexto para uma outra conversa, em especial se a questão da mediatização da imagem se associasse à manipulação da imagem ou, a um outro nível, se se pensasse nos diversos veículos que as sociedades contemporâneas têm para que a fotografia se projecte nesse espaço mediatizado. E para a conversa ter utilidade teríamos de distinguir vários níveis de questões sobre essa ideia de “mediatização da fotografia”. Mas essa não é o tema de hoje. O que agora me parece de evidenciar é que os meios de comunicação formais e informais vieram dar actualidade à fotografia, dando-lhe uma importância acrescida no contexto das sociedades contemporâneas. Nos últimos tempos tenho-me interrogado é sobre um outro fenómeno que decorre dessa mediatização: o modo como se tem valorizado a fotografia como objecto de arte com valor nos mercados de arte. A fotografia é actualmente um bem artístico relevante, graças a essa mediatização. Há obras que começam a atingir valores significativos, criando um mercado de investimento importante e com um potencial de crescimento muito grande. Mas há perversões. Porque essa mediatização valoriza no mercado o bom, mas, algumas vezes, o mau e muito mau. Como também permite que facilmente se possa esquecer o bom e o muito bom. © João Miguel Barros #04 Homenagem Ainda menino usava panos enrolados nas mãos para bater em sacas cheias de farinha. Enrijava os músculos, ouvira dizer. Queria crescer com o corpo cheio, acima de tudo para chamar a atenção das miúdas mais engraçadas do bairro. Eram essas as suas rotinas de tempos livres, demasiado livres. Mais velho, começou a usar o corpo em combates a sério. Alimentava-se da ânsia de esmagar o adversário, mostrar o seu lado feroz e implacável, mas já não o de alimentar o sonho de namorar com a mais bonita do bairro. Apenas bater. Para ganhar. Ao mesmo tempo ia engrossando o corpo, sem tempo para reforçar a fluidez da mente. Sim, sabia bater. Era conhecido por bater forte, de forma implacável, até inteligente. Ganhava. Outras vezes perdia. Mas, a mais das vezes, ganhava. Com o tempo, e sem tempo, passou a viver enclausurado nas cordas do ringue. Batendo. Levando. Chorando. Rangendo os dentes protegidos. E ocasionalmente sorrindo de raiva. Sim, sorrindo. No seu último combate perdeu os sonhos da sua vida. Mas saiu inteiro, pelo seu pé, continuando a sorrir.