Descida aos infernos

1

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]egundo o dramaturgo ateniense Agatão, o único poder negado aos deuses é o de desfazerem o passado. Isto, coitados, são os deuses gregos. De outro expediente, insusceptivelmente eficaz, os políticos moçambicanos que fazem e desfazem o passado, à sua medida e ambição. O seu poder (é a crença instalada) sustenta-se no desiderato de apagar a memória.

Tive um jantar com amigos. Alguns trabalharam em arquivos e outros fazem investigação e dependem da frequência dos arquivos. A conclusão é unânime: em Moçambique os arquivos estão mortos, arrasados por um banimento infindável.

Começa pela desorganização voluntária dos serviços, no fito de servir interesses dos funcionários. Por exemplo, se os dados estatísticos mostram que naquela biblioteca ou arquivo há uma maior solicitação de determinadas publicações, de xis temas e eventos, então rapidamente desaparecem essas publicações e as páginas referenciais mais requeridas (arrancadas sem pejo), de modo a que posteriormente possam ser solicitadas “particularmente”, contra o pagamento de uma quantia.

Os primeiros funcionários do Arquivo Histórico rasgavam os jornais para embrulharem o pão e o mata-bicho – delatado com vergonha pela primeira directora do Arquivo. Hoje, metade das colecções de todas as publicações foi espoliada, destruída, despedaçada. Não há modo de empreender qualquer investigação séria com balizas cronológicas: as faltas, omissões e os hiatos serão fatais. Dois terços dos livros da Biblioteca Nacional foram vendidos na rua, em duas décadas de desvios para as bancas de rua. A única colecção nacional provavelmente incólume será a do Banco de Moçambique, fechada ao público. Um dos comensais contou ter orientado uma formação para bibliotecários e arquivistas e como sete dos nove formandos escolhidos pela comunidade eram analfabetos.

A sanha de vender os livros ao desbarato ou de se desfazerem do “papel” começou depois da independência, no gesto de se deitar para o lixo os arquivos das Conservatórias, como as pastas com as certidões de nascimento, “porque já não eram necessárias!”, mas estes primeiros actos de irresponsabilidade, ignorância e inconsciência, volveram depois actos de amputação voluntária ao sabor da conveniência política e estenderam-se a todos os domínios. Os arquivos de cinema não estão catalogados – ou seja: não existem -, os arquivos da televisão pública foram literalmente apagados, etc., etc.

A última, contada ao jantar: há duas semanas um dos convivas quis consultar vários números da revista Tempo – um baluarte da comunicação em Moçambique, antes e após a independência – e respondeu-lhe o funcionário da instituição: o arquivo da revista Tempo foi “confiscado pela Presidência”.

A tentar adivinhar, sopesar, esmiuçar o que signifique tal “confiscação” bebemos mais duas garrafas à mesa – talvez em luto.

Até que alguém deixou cair:

– Havia um apagamento deliberado da memória que envolvesse os portugueses e agora impõe-se outro, eles não querem que se recorde que hoje os grandes defensores do capitalismo mais cru e selvagem eram os ortodoxos líderes socialistas de antigamente…

Réplica imediata de outro dos comensais, erguendo o copo numa saúde:

– Ah, menos mal, se afinal é um gesto de decoro…

– É o decoro de A Grande Farra… – atira um terceiro.

 

2

Ao arrepio do que se passa em Moçambique, a norte o desnorte ecoa o ditado apocalíptico de Baudrillard: «Hoje o meio mais seguro para neutralizar a alguém não é saber tudo sobre ele, mas sim dar-lhe os meios para ele saber tudo sobre tudo. Já não é necessária a repressão e o controlo, substituído com vantagem pela saturação da informação e da comunicação, porque o consumidor está encadeado pelo vício da pantalha. De forma mais segura será o vulgo paralisado com o excesso de informação sobre tudo (e sobre si mesmo), do que privando-o de informação». Eis o lado negro e obsceno da avalancha mediática que tem, contudo, outras virtualidades e recortes menos sombrios até porque na verdade às imagens de um espelho ninguém as consegue penhorar ou confiscar.

3

Morreu esta semana o poeta chileno Nicanor Parra, aos cento e três anos. Poeta e matemático, posicionou-se com Antipoemas (1955) como o anti-Neruda, enveredando por uma poesia discursiva e narrativa e que evita a metáfora.

Cheguei ao poeta chileno por causa de uma dedicatória de Fernando Assis Pacheco, que lhe chamava «meu mestre».

Nicanor – irmão da cantora Violeta Parra e do artista de circo Óscar Parra, conhecido como el Tony Canarito – foi Prémio Cervantes de 2011.

Dele fiz a tradução de dúzia e meia de poemas, aqui deixo a sua VIAGEM PELO INFERNO:

 

Numa sela de montar /fiz uma viagem pelo Inferno. //No primeiro círculo vi umas figuras/ placidamente recostadas/ a uns sacos de trigo.// No segundo círculo borboleteavam homens em bicicleta, / à rasca, sem saber onde apear-se/ – pois estavam bravas as chamas!// No terceiro círculo reparei / numa só figura humana/ que parecia hermafrodita.// Era criatura sarmentosa/ e dava de comer aos corvos. //Trotando e galopando queimei/ um intervalo de várias horas/ até ter chegado a uma cabana/ no interior de um bosque/ onde vivia uma bruxa. // Sacrista do cão,/ foi por um triz! // Já no círculo número quatro/ topei um ancião de longas barbas,/ calvo como um sandeu/ que montava um pequeno barco / no interior de uma garrafa. / Que afável o seu olhar! // No círculo número cinco vi / uns jovens estudantes jogando futebol / araucano com uma bola de trapos. / Fazia um frio de rachar. // Tive de passar a noite em claro / num cemitério, encostado/ a uma tumba / para não morrer de frio.// No dia seguinte continuei a minha viagem por uns cerros/ e vi pela primeira vez os esqueletos/ das árvores incendiadas por turistas. // Só restavam dois círculos./ No primeiro lá estava eu / sentado a uma mesa negra. / Lambuzava-me com um passarinho/ e a minha única companhia/ era um candeeiro a petróleo.// No círculo número sete não vi/ absolutamente nada, só me chegaram ruídos/ estranhos e uns risos espantosos/ enleados nuns miados, suspiros/ profundos, que perfuravam a alma.

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