Desprezo

We didn’t start the fire/it was always burning, since the world’s been turning.

Billy Joel

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] politicamente correcto, outra vez. Hoje queria falar daquilo que muitos entendem pelo “desprezo pelo politicamente correcto”, ou DPC, para facilitar. Tem-se feito por aí uma confusão sobre o que é exactamente o tal do politicamente correcto, e não é à toa que essa “confusionistas” angariam seguidores; afinal fala-se aqui do “politicamente”, e de política e dos políticos está quase toda a gente farta. O essencial seria mesmo discernir o que é o correcto, e distingui-lo do incorrecto. Essencialmente, tudo o que não é uma coisa, é a outra, invocando aqui do sr. de La Palice. E falando apenas em meu nome, o “incorrecto”, ou o “errado”, não me interessa para nada.

O DPC tem piada. Sempre teve. Tempos houve em que considerávamos que o humor do Herman José era “politicamente incorrecto”, que ele dizia o que lhe dava na real gana, e isso entretia-nos à brava. Admirávamos sobretudo a coragem do indivíduo em substituir-nos na tarefa de não precisar de “dar cara” a ninguém. Dava-nos mesmo era vontade de fazer o mesmo com o chefe, com a mulher, com a sogra, com o gajo que estacionou no nosso lugar em frente ao serviço, mas não dá. É preciso engolir alguns sapos para se poder viver em harmonia (já está, apanhei “harmonite” aguda), em sociedade, enfim, aprender a não ser um bicho-do-mato. Tem sido mais ou menos assim desde que saimos das cavernas.

Isto não tem que ser necessariamente um mal, ou “a ditadura do politicamente correcto”, como alguns lhe chamam. O problema aqui é que os autores desta nova versão do DPC alteraram o conceito anterior de “politicamente correcto”, dando-lhe um aspecto completamente atroz. O DPC na sua versão mais pura, nas redes sociais e na boca de politiqueiros populistas, não tem servido senão para branquear uma série de atentados à ordem social, à humanidade, e até à lei. Dizer-se que “todos os ciganos são indigentes”, que “a maior parte dos bandidos são pretos” ou que “os refugiados são terroristas” não é “dizer as verdades”, nem nada disto tem a ver com o politicamente correcto, mas com o humanamente desprezível – racismo e xenofobia não são formas de liberdade de expressão: são crimes!

O expoente máximo de tudo isto, o “poster boy” do DPC, é nem mais que o presidente dos Estados Unidos, figura alaranjada e representante da supremo do bordão de “levar tudo à frente”, e “todos mortos e ainda era pouco”. Por mais asneiras que faça, sejam elas determinar a saída do seu país das convenções das quais participam os países do mundo todo, a atitude confrontatória em estilo de “bullying” com o regime da Coreia do Norte, ou mais recentemente a ideia de transferir a embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém (que já era “de facto” a capital do estado de Israel, não era isso que estava em causa), o presidente Trump consegue manter uma larga base de apoio. Pronto, se esta espécie de clubismo leva ao ponto de fazer pessoas supostamente inteligentes negar evidências como o aquecimento global, que soluções pode isto ter? Trump tornou-se na vaca sagrada do DPC, mesmo que muito boa gente não tenha entendido do que se trata afinal o “politicamente correcto”. Quanto à parte do “politicamente”, desconheço o seu estado, mas posso garantir que o “correcto” anda mesmo pelas ruas da amargura.

PS: Uma vez que me vou ausentar do território em breve, não podendo assim contribuir com a coluna da próxima quinta-feira, como habitualmente. Assim sendo, gostaria de desejar a todos os leitores do Hoje Macau um feliz Natal, solstício de Inverno ou Channukah, conforme o caso. E que melhor altura que não esta para reflectir naquilo que é realmente o correcto. Não só para nós, mas também para os outros. Para todos. E boas festas.

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