PolíticaNas ondas. Sob o signo de VW. António de Castro Caeiro - 22 Set 201722 Set 2017 [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]empre que a porta se abre. Já vi a porta abrir-se e fechar-se vinte vezes. A cada vez a ansiedade aumenta. De cada vez que a porta se abre, tem toda a nossa atenção. Olha-se com uma expectativa. É frustrada de cada vez. Sempre que a porta se abre, o que quer que alguém esteja a fazer, instalado na sala, é interrompido. A leitura atenta, os olhos postos na TV, a rádio escutada, a roupa a engomar ou apenas o estar lá, tudo isso, o que quer que seja que nos absorva e serve de terminal no mundo é suspenso. Olhamos para a porta que se abre sem saber quem lá vem, se não se enganou na porta. Podemos não estar à espera de ninguém como podemos estar à espera de alguém. Nos dois casos o olhar esboça em antecipação a partir do facto “a porta abre-se” possibilidades. Vem aí alguém. X chegou. Não é X, mas é alguém. Há decepção ou alívio. Poderia não se querer que alguém em particular chegasse. Ou não, o contrário. Poderia querer-se que alguém chegasse ou já tivesse chegado. Sempre que a porta se abre, interrompe-se a agenda do quotidiano: ler, coser, engomar, comer, sentar-se, distrair-se, assistir a…, escutar. Não é apenas a porta ser aberta. Um movimento empurra-a para dentro da sala ou puxa-a para fora. É a indicação dessa notícia: alguém vem aí. A interrupção do sentido do serão para quem se encontra na sala. A porta abre-se vinte vezes. Vinte vezes a sala desfaz-se como o campo em que as pessoas se encontram, inseridas na sala, a fazer o que estão a fazer. Vinte vezes cabeças olham na direcção da porta. Frustra-se a expectativa ou ela é preenchida. Enceta-se uma outra linha de acção. Regressa-se ao que se estava a fazer: bebe-se um golo de chá, volta a engomar-se, presta-se atenção ao que o locutor diz, o livro permite a leitura. Ou então, fala-se com quem entrou, pergunta-se e responde-se, puxa-se uma cadeira para se sentar à mesa, abre-se um novo rumo. O serão é descontinuado. O serão é retomado. Alguém entra na sala. Tudo se modifica. Não apenas porque a pessoa ocupa o espaço na sala que o seu corpo requer. O corpo é a fronteira da ocupação do lugar em que se encontra. A pessoa enche a sala inteira com a sua presença, mesmo quando não é vincada, quando a presença de alguém não nos diz nada, é apagada. Mas a presença de alguém pode ser intensa. Quem lá se encontra interrompe o que está a fazer, fica preso da conversa, contente ou triste. Os maples, a mesa de jantar, os candeeiros de pé alto e o suspenso do tecto, a rádio antiga e a TV, a tábua de engomar, toda as peças de mobiliário sem excepção, o chão alcatifado, as paredes e as janelas, o tecto, o espaço vazio entre os objectos e as pessoas, as pessoas que lá se encontram ficam revestidas pela presença de quem entrou, contaminadas por ele, como ele é contaminado pela sala toda e as pessoas que lá se encontram, banhadas pelo fluxo complexo em trânsito, os rápidos que são as existências de casa pessoa a fluir, na torrente do seu ser. A sala de jantar antes e depois é diferente. A mesa de jantar é diferente consoante são diferentes as pessoas que a ela se sentam para jantar. E há pessoas que não virão já nunca mais juntar-se a nós. A mesa de jantar povoada outrora é diferente e irrecuperável, agora que está despovoada, esvaziada desses outros que já não virão sentar-se a ela. A sala toda é diferente se for impossível que alguém entre já ou se for possível que alguém entre nela. A diferença não é apurada nos conteúdos. Podem ser exactamente os mesmos. Mas quando alguém já não se pode sentar à mesa connosco, estar na sala, nela tomar lugar, a sala é radicalmente diferente da sala quando alguém ainda pode vir simplesmente para lá estar connosco. Já não é habitável por esse alguém. A sala não admite ser alagada pela presença desse alguém. Ficou seca dele. Sem o seu revestimento, clima ou atmosfera. Ou melhor, a sala contém desse outro que desapareceu ainda vestígios da sua presença passada, o sofá vazio da pessoa que se costumava lá sentar, o lugar à mesa vazio, o armário onde ainda estão relógio e óculos, mas sem interacção. É lá que estão e ficaram. O espaço todo da sala esvaziado da presença, idas e vindas desse alguém. O desaparecimento, aspirado, implosão da vida de alguém para fora da sala para sempre desse alguém, ainda presente na sua ausência. À hora do jantar, sento-me no meu lugar. Vim mais cedo, para poder gozar um momento de antecipação. Esperar por ti, como costumava fazer, quando dizias para começarmos, que estava a chegar. Já não sobes as escadas como eu ouvia que subias por elas, a cadência particular do andar que sobe, o tom do contacto com cada degrau, o ritmo e a velocidade com que chegavas ao nosso andar. Já não metes a chave à fechadura. Ninguém metia a chave à fechadura como tu. Cuidadosamente, não para surpreenderes alguém num qualquer delito, mas porque não atinavas bem com a ranhura e depois giravas a chave na ranhura com velocidade e precisão. Abrias a porta da sala de jantar que dava diretamente para a porta da rua. Eu, agora, do lado de dentro finjo que sei que não virás. Abre-se a porta. A casa está agora cheia de gente estranha, hóspedes, jovens universitários. O exercício de antecipação é tão bem feito que estou mesmo na expectativa de que estás aí a rebentar. E não. Não vens. Não vieste. Não virás. A sala toda mergulhada no ambiente de expectativa da tua vinda é diferente da sala inteira quando lá estavas sentado. As pessoas existem de uma forma radicalmente diferente de como uma mesa está posta no meio da sala, com as respectivas cadeiras, pratos e talheres, o cesto do pão, copos, galheteiro e vinho. Quem lá se senta à mesa hoje vai e vem, dizem bom dia, bom apetite, até logo. A sala está num campo de forças diferente do campo de forças de outrora. Metamorfoseou-se. Tudo lá está como dantes. Tudo é diferente. Irreconciliável. É onde estou à espera. A sala de jantar não perdeu nenhuma mobília, nem cor, nem reposteiros, nem armários. Está, contudo, escaqueirada. Vazia da possibilidade de alguém. Cheia da impossibilidade de alguém que não vem. Os talheres inertes, o prato sem sopa, o copo vazio, o lugar por ocupar para sempre. Da mesa não sairás, porque já não podes vir. O mesmo da casa. Não regressarás à noite nem sairás de manhã. O mesmo se passa nas escadas, já não as sobes nem desces, a porta da rua, a esquina ao fundo, a cidade inteira, o mundo na sua totalidade indicia a tua ausência definitiva. O mundo é o mesmo na realidade física e material. É diferente. O mundo sem alguém que o habitou é uma transfiguração do mundo quando alguém que desapareceu o habitava. É isso que “me diz” a porta quando se abre e não deixa perceber a tua vinda. Vinte vezes a porta abre-se, mas já não vens.