O Jogador

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]unca me tinha sentido assim, juro que por momentos acompanhei a rotação da Terra. Acabara de perder a minha estimada bicicleta num lance de dados e senti uma elação tão intensa na derrota que ultrapassou em muito a alegria de a receber. O meu corpo foi trespassado por um sentimento torcido de dever cumprido. Aceitei a ruína com gratidão, como algo natural, como uma argamassa especial que solidifica o carácter. Esta sensação de demente e errónea invencibilidade, de patológico optimismo, havia de tomar o controlo da minha vida.

Regressei a casa tecendo malhas de desculpas para justificar a perda da bicicleta, mas já antecipando no lombo as iniciáticas repercussões do azar. Porém, o que me ocupava a cabeça era a imagem futura da vitória, o acto de chance que atribui glória aos que arriscam e imortalidade aos que se expõem aos caprichos do acaso.

Passei a amar o risco, a sentir-me confortável na inquietação. Sempre escolhi os becos mais escuros movido pelo poder magnético do perigo.

Não descansei até que a sorte me bateu à porta, não fui um daqueles apaixonados que teve de provar a sorte de principiante para sentir o chamamento. Não, eu perdi e aprendi a apreciar a derrota como algo nobre e inevitável. Persisti, entreguei-me despido, sem pedir recompensa ou qualquer tipo de gratificação. Devoção incondicional, como deve ser.

O triunfo abriu-me as portas de um mundo onde sou Rei e Soberano. 20 moedas que, em larga escala, compensaram todos os prejuízos, sararam todas as chagas que fui acumulando. Até provar a sorte tudo o que tinha era frio, fome e pouca roupa em cima do pêlo. Fui fiel depositário das minhas dores até ao momento em que o esplendor retiniu nos meus bolsos.

A vitória ainda me viciou mais, foi o golpe de misericórdia, a revelação de que os meus dias seriam entregues à volúpia. Estava fadado a perseguir a sensação de ganhar aquelas 20 moedas até ao fim. Toda a minha vida era um empecilho, um vazio de excitação, apenas agravação, tempo perdido, unhas roídas e cigarros a abarrotar num cinzeiro improvisado.

Sempre que pressentia acção o meu coração disparava, ainda dispara. Seja o que for, eu quero entrar com algum. Todas as corridas e combinações de jogos de cartas, dados, lutas de toda a espécie, eventos normais da vida que tiverem um ângulo de aposta, tudo serve, vou a todos os jogos.

Entrar no Casino foi como sentir revelação divina, um momento de claridade, a profana anunciação. A primeira vez que pisei a alcatifa deixei-me engolir por todo o ambiente e mergulhei fundo nos bons presságios pintados a vermelho e dourado. Foi avassalador, o excesso de estímulos deixou-me num estado de leve catatonia, congelado num delicioso estupor. Senti imediatamente que era ali que pertencia. Hipnotizado pela coreografia de mãos dos croupiers, confortado na indiferença com que jogavam a vida das pessoas.

Ganhei a capacidade de reconhecer os meus pares, aqueles que também perseguiam a primeira e arrebatadora vitória, desta vez em grande. Olhos como hienas famintas, a farejar onde se esconde a sorte, sustentados em esquemas e artimanhas várias, a viver de expedientes em máxima rotação nas margens da probabilidade. Deambulam pelas mesas, de olhos vazios, em busca de um temporário vencedor, procuram essa proximidade como lapas da fortuna que tentam apanhar algumas migalhas de sorte.

Nunca fui assim. Desde o começo entreguei-me ao acaso, como uma alma libertada por redenção divina. Joguei a minha vida, rompi todos os laços humanos com empréstimos que nunca tive a intenção de pagar e acumulei mentiras para as próximas quatro gerações.

Cai, ciente do perigo, nas garras do crime que se alimenta do desespero dos jogadores e agora tenho de fugir desta cidade de mãos a abanar, deixando apenas a memória de estratosféricos altos e abismais baixos. Sou um exilado da sorte. Para trás deixo uma existência insolvente, ainda assim livre de arrependimentos. Sinto que só perdi duas vezes: perdi a minha bicicleta nos dados e perdi as chances de voltar a jogar outra vez. Só não perdi a sensação vertiginosa de tudo jogar numa mão. Aposto que isso ficará comigo para sempre.

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