Entrevista EventosEntrevista | Duarte Drumond Braga, académico João Luz - 21 Jul 2017 Começou por se interessar pelas representações da Ásia na cultura e literatura portuguesa, mas passou para o lado do estudo das pessoas que escreveram em português em territórios asiáticos. Hoje em dia, Duarte Drumond Braga estuda um tesouro cultural de valor inestimável e totalmente desconhecido: o acervo literário indo-português e as relações entre Goa e Macau [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo começou a sua incursão pelas literaturas em português no Oriente? Trabalhei um pouco a questão das representações da Ásia na cultura e na literatura portuguesa. Depois quis estudar o outro lado, as pessoas que estiveram na Ásia e escreveram em português. As literaturas em língua portuguesa na Ásia são traduções literárias muito pouco estudadas, desconhecidas, talvez a mais conhecida seja mesmo a de Macau. Há uma literatura em português em Timor, mas a menos conhecida dos três é a de Goa, algo misteriosa por ser uma literatura de consumo interno. Encontra-se a estudar esse espólio literário indo-português. O que tem encontrado? Estou a estudar a relação entre Goa e Macau na literatura portuguesa, ao abrigo de uma bolsa de pós-doutoramento da Universidade de São Paulo, o projecto “Pensando Goa (Fapesp)”, assim como o projecto do “Orientalismo Português”, da Faculdade de Letras. O projecto de São Paulo é megalómano, com mais de 40 investigadores portugueses, brasileiros, americanos, indianos, e propôs-se estudar esse acervo. Se temos, mais ou menos, a noção das literaturas africanas em língua portuguesa, quem são os seus autores, que livros escreveram, existem também listagens, dicionários e índices. Muito pouco disso existe na literatura indo-portuguesa. Ainda há um trabalho de reconhecimento do acervo que tem de ser feito e que tenho ajudado a fazer no âmbito desse grupo. O acervo é enorme, o que é surpreendente tendo em que conta que o português sempre foi altamente minoritário em Goa, talvez até mais do que em Macau. É uma produção que está ligada aos goeses católicos, que escreviam em português, e é um pouco uma literatura de consumo interno. Há muita coisa que não chegou a sair de lá. Apesar de ser de consumo interno, isso não quer dizer que seja uma literatura provinciana, é interna só no sentido em que há uma comunidade pequena que produz e lê essa literatura. Em que estado de conservação se encontra o acervo? Estamos a falar sobretudo de produção do século XIX e XX, porque tudo o que está para trás é meio incerto, pouco conhecido. Há autores goeses a escrever em português logo desde o século XVI, mas as coisas mais antigas estão em mau estado de conservação. As coisas mais modernas, séculos XIX e XX, estão em condições relativamente frágeis, mas aceitáveis. Há muitas coisas em bibliotecas em Pangim, sobretudo, outras estão em bibliotecas privadas dispersas por Goa. Uma parte importante deste projecto da Universidade de São Paulo é digitalizar o máximo de coisas possível, mesmo as coisas que estão em bom estado e que se vão deteriorando com o clima, a humidade, para ficarem preservadas. Também há a questão de, eventualmente, disponibilizar na Internet algumas das obras para que caíam em domínio público e serem conhecidas. O grande problema aqui é que estamos a falar de autores que ninguém leu, que não têm reedições modernas. Apesar de haver, e isto é impressionante, editoras a publicar actualmente em português em Goa. A editora do Frederick Noronha é um exemplo. Chama-se Goa 1556, a data da introdução da imprensa na Índia via Goa. Embora o público leitor seja reduzido, publica-se literatura, até ensaio, memórias em português. Isto apesar de o inglês ter ganhado protagonismo. As famílias que falavam o português mudaram para o inglês, o português é falado mais como uma língua doméstica. Quem eram estes escritores? Existe diáspora portuguesa em Goa, assim como em Macau, mas a questão é que o grosso desta literatura é produzida mesmo pelos goeses. Os portugueses quando conquistaram Goa forçaram camadas vastas da população hindu a converterem-se em massa. Esses conversos adoptaram nomes cristãos, portugueses, geralmente o nome do padre que foi o padrinho. Fizeram uma conversão cultural, abandonaram os moldes culturais do hinduísmo, adoptaram o catolicismo. São esses que no século XIX, e antes, produzem essa literatura. Mas há também os descendentes de portugueses nascidos na Índia, já não são diáspora, são segundas e terceiras gerações. Que retrato da sociedade se pode tirar deste acervo? É um meio bastante misterioso que ainda estamos a tentar compreender. Podíamos traçar alguns paralelos com a comunidade macaense na medida em que os goeses se assumiram como portugueses do Oriente. Mas, na verdade, têm uma entidade distinta dos portugueses e souberam marcá-la bem nos momentos chave. Tenho usado como chave para ler os goeses uma frase de um autor chamado João da Veiga Coutinho. Um nome portuguesíssimo. Ele publicou um livro chamado “Uma Espécie de Ausência”. Nesse livro ele diz “nós goeses éramos portugueses, mas não éramos os portugueses”, para mim está aí o segredo todo. Éramos portugueses, pertencíamos ao império, tínhamos cidadania portuguesa, mas não éramos “os portugueses”. Não éramos os portugueses no sentido em que éramos subalternizados pelos portugueses que estavam no topo da hierarquia colonial. Também nesta frase ele está a tentar demarcar-se, criar uma identidade distinta dos portugueses, reclamando para os goeses uma forma também de ser português. Porém, é preciso evitar cair no discurso perigoso de ver estes territórios como meras projecções de Portugal, são territórios complexos, multilinguísticos. A literatura em língua portuguesa nunca existiu sozinha, ela intrinca-se com o inglês, com o concani, portanto é preciso deixar claro que são territórios muito plurais, tal como Macau. De maneira alguma são projecções de Portugal no Oriente. Por outro lado, os goeses sempre que lhes conveio politicamente, simbolicamente, quiseram reclamar para si também uma pertença a essa identidade portuguesa. Em que moldes se tem estabelecido a ligação Goa – Macau em termos literários? É importante entender que Goa, Macau e Timor funcionam um pouco em rede, em sistema. São espaços insulares do Império na Ásia, dependem uns dos outros e quanto mais para trás mais eles estão ligados. Os governadores de Macau vinham de Goa, eram eleitos e vinham para cá porque Goa era bem mais importante do que Macau nos séculos XVI, XVII e ainda no XVIII. Essa situação só vai terminar, creio, que em 1844/45. Timor também, a certa altura, depende de Macau. Isto funciona em rede em termos administrativos e eclesiásticos. Creio que Timor pertenceu à diocese de Macau durante uma data de anos. Não há um contacto muito directo entre escritores de Goa e Macau. Ainda um pouco fora da literatura, há goeses que viveram em Macau e vice-versa. Um exemplo interessante é a Escola Médico-Cirúrgica de Goa, que a certa altura era a única unidade de ensino superior no Ultramar. Houve macaenses que foram estudar medicina para Goa, uma ligação um pouco inusitada. Neste contexto de rede, quais as distinções entre a literatura de Goa e Macau? É preciso ver que estamos a falar só da produção em língua portuguesa, que é um recorte sempre artificial. Estamos a falar só de secções. Parece-me que a grande diferença é que a literatura goesa em língua portuguesa está bastante ligada a esta comunidade católica, embora tenha havido também hindus que escreveram em português. Os críticos têm visto a literatura de Macau em português como algo de mais vasto, não seria apenas a literatura produzida pelos filhos da terra, pelo Henrique de Senna Fernandes, a Deolinda da Conceição, mas seria algo mais vasto. Como o acervo que descobrimos é tão vasto eu creio que, por agora, é melhor ter algum cuidado, conhecer primeiro o que é que os goeses, de facto, produziram, para depois aprenderemos como é que podemos colocar essa literatura. Acredito que seja possível no futuro falarmos em literaturas asiáticas em língua portuguesa, incluindo Timor, pensarmos como um sistema, uma rede, tenho defendido isso. Passarmos a ver que outro sentido ganha a literatura de Goa lida junto com a literatura de Macau, com a literatura de Timor, no fundo literaturas insulares longe da metrópole, de alguma forma isoladas. Por outro lado, é preciso ter em atenção a circulação dos portugueses que passam por estes territórios e vão escrevendo sobre eles, por exemplo, a Maria Ondina Braga que antes de vir para Macau sai de Goa. Há este caso dos intelectuais portugueses que tiveram esta mobilidade. Os textos que estes autores portugueses foram escrevendo também dão corpo às literaturas de cada um desses espaços. Que peso tem este acervo indo-português? Penso que as literaturas de língua portuguesa de Goa e Macau têm de entrar urgentemente no estudo das literaturas em língua portuguesa. A literatura portuguesa, brasileira e as africanas estão muito ligadas à ideia de “nação”. Macau e Goa são outras realidades. Temos de conhecer estas literaturas para podermos repensar “the larger picture” e redefinir o quadro do que são as literaturas em língua portuguesa, como aconteceram, quais os contactos que existiram entre elas. Sabemos que um dos primeiros jornais moçambicanos tinha goeses na sua fundação. Até no próprio famoso jornal publicado em Macau, Ta-Sii-Yang-Kuo, há um goês na sua fundação. Há relações que estão mal estudadas e que têm de ser conhecidas para sairmos um pouco daquela ideia de que a literatura está ligada à nação.