VozesDa dessacralização do poder Rui Flores - 26 Jun 20172 Jul 2017 [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m grupo de alunos da Universidade de Macau foi recentemente recebido pelo Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, no âmbito de uma visita de estudo à Europa, organizada pelo European Union Academic Programme in Macao. O facto de um grupo de alunos de Macau, na sua grande maioria da China continental (integravam também a delegação uma aluna “local”, uma italiana e um butanês), ter sido recebido por um chefe de Estado é, naturalmente, notícia, e diz bem da importância estratégica que Portugal dá à China, particularmente à Região Administrativa Especial. Mas mais do que a mera nota da visita, o contexto do encontro e a forma como Marcelo recebeu os alunos (sobretudo mulheres, num claro sinal de que o género feminino domina a academia – e isso não acontece apenas na Europa) merecem reflexão. Marcelo é desarmante. Põe todos à vontade. A visita à Europa dos alunos da Universidade de Macau incluiu, entre outras, reuniões na Comissão Europeia e no Serviço de Acção Externa da União Europeia, em Bruxelas, ou encontros na Assembleia da República, com deputados da comissão parlamentar de amizade Portugal-China, e no Ministério dos Negócios Estrangeiros, com a secretária de Estado dos Assuntos Europeus, em Lisboa, ou o presidente da Câmara Municipal do Porto. O encontro menos formal terá sido aquele que decorreu em Belém. Marcelo está na moda. E ele sabe-o bem. Primeiro, arruma com qualquer formalismo (ou esvazia qualquer nervosismo que pudesse afectar a delegação) logo no início do encontro. Cumprimenta todas as mulheres da delegação, e são 11, com um beijo. Na cultura chinesa, o beijo é um contacto físico muito íntimo e por isso apenas reservado aos mais próximos. Não era algo com o qual as alunas estivessem à espera. Sobretudo vindo de um Chefe de Estado. É evidente que após as três ou quatro primeiras alunas terem sido “corridas” com um ósculo presidencial, as seguintes já se preparam para ele de um modo mais natural. (No final, para as selfies da praxe, são elas que vão a correr para ele, de beijo e abraço prontos, para se despedirem, como se tivessem acabado de visitar o avô.) Depois, o discurso. Numa altura em que as universidades chinesas se fecham sobre si próprias – com declarações públicas de altos quadros chineses, inclusive do ministro da Educação, contra os valores ocidentais nas universidades chinesas –, Marcelo fala da importância dos estudos europeus, das instituições europeias, da solidariedade europeia e dos valores europeus no actual contexto internacional de interdependência e globalização. A forma como o faz não poderia ser mais directa, simples. Para que todos o compreendam. Depois de perguntar aos alunos se lhe querem colocar questões, salienta que esteve na região a dar aulas, na mesma Universidade de Macau, no final da década de 1980, e que se recorda bem da qualidade dos alunos. Tudo de um modo informal, sorridente, cheio de apartes. Marcelo é um exímio comunicador. É com essa mesma simplicidade, por exemplo, que pega no telefone, dois dias depois da reunião com os alunos de Macau, em pleno centro de operações da proteçcão civil, para convencer uma velhota de uma aldeia ameaçada por um dos incêndios florestais, que então lavravam na região centro, a abandonar a sua casa. Com a sua presidência dos afectos, Marcelo Rebelo de Sousa tem feito mais pela aproximação dos portugueses das instituições do que qualquer política de inserção social. Marcelo não é apenas um professor culto e experiente, que consegue traduzir conceitos complexos por palavras simples, apreensíveis por quase todos. Ele é também o comentador político, que durante anos partilhou o serão de domingo com as famílias portuguesas, comentando a actualidade, sugerindo caminhos, identificando os bons e os maus, dando notas aos políticos (como se ele próprio estivesse acima disso), e foi aperfeiçoando a sua forma de comunicar aos tempos contemporâneos. Outros políticos, noutros países, tentam transformar a política numa coisa natural; dessacralizá-la. Não é fácil. Muitos acabam por cair na esparrela da contradição ou são vítimas de um mau desempenho de actor medíocre. Marcelo é um homem numa missão. Os alunos de Macau assistiram na primeira fila a essa missão. A de por palavras simples, com uma capacidade ímpar de ouvir, mostrar que os assuntos de Estado podem ser conduzidos de uma forma mais aberta, menos dramática, com resultados, porventura, mais eficazes. Uma espécie de alternativa a que não estamos muito habituados. Algo que os alunos não irão seguramente esquecer.