Meter a colher

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntre marido e mulher não se mete a colher, como se dizia antigamente. Agora mete-se – e somos incentivados a meter. Não é porque as pessoas envolvidas não sejam capazes de identificar a violência doméstica que as aflige. Formalmente toda a gente consegue definir violência doméstica. O que acontece é que há muitos factores que podem influenciar o processo de denúncia. Por exemplo, na Rússia, a violência doméstica nem é um conceito per se, é simplesmente encarado com normalidade e inevitabilidade. Ao ponto do estado não criminalizar (se isolada) uma acção abusiva. Há, por isso, muitas definições diferentes (ou ausência de definições) para relacionamentos abusivos/violência doméstica, seja na prescrição legal, como nas nossas concepções mundanas de como um relacionamento funciona.

Na definição mais pura e singela do amor não fará sentido enquadrá-lo nestes moldes da violência. Contudo, esta ligação existe, como se a polimorfia do amor fosse capaz de justificar um chapa na cara ou um comentário ofensivo do nosso mais que tudo. Há pouco tempo surgiu um hashtag (lá estou eu a referir-me a modernices) onde se tentou criar alguma sensibilização ao tema. É um relacionamento abusivo quando (#erelacionamentoabusivoquando) há desconsideração pessoal de qualquer forma e feitio. Isto porque normalmente considera-se a violência física como a única forma de manifestação de violência na relação. O senso comum percebe um relacionamento abusivo somente quando vê nódoas negras no corpo – mas essa é só a ponta do iceberg.

Quando tentamos perceber o limiar de abuso nas palavras, percebemos que temos uma tendência natural para desculparmos os outros pelos comentários menos simpáticos. ‘Ele estava mal disposto – tinha tido um mau dia’. Justifica-se circunstancialmente as palavras que nos magoam porque é muito mais fácil assim fazê-lo. De que outra forma justificamos que a pessoa que nós amamos trata-nos mal? Estes são recursos/ defesas que criamos para dar sentido a uma história que não deveria fazer sentido.

Se um estranho chegar ao pé de mim e me der um estalo – eu percebo que foi abuso. Se foi o meu namorado, é legítimo eu sentir-me confusa sobre a absurdidade da situação. A denúncia é sempre difícil – já para não falar do medo de represálias que as vítimas e as testemunhas possam sentir se o fizerem. Viram o que aconteceu numa terrinha em Portugal esta semana? Quatro pessoas foram mortas porque não quiseram testemunhar a favor de um homem que era violento com a sua ex-mulher.

Aliás, em situações mais dramáticas, os abusos podem acabar em crimes, ditos, passionais, e essa denominação incomoda-me. Fazer mal a alguém não deverá ser posto no mesmo saco etimológico da paixão. Não se mata a mulher e os filhos porque um homem viu-se cheio de paixão. Parem de o chamar assim – porque a paixão não tem nada a ver com nada. É claro que podemos focarmo-nos na psicopatologia que leva estes actos a vias de facto, mas não consigo deixar de pensar que vivemos num mundo que não quer constatar um facto – a violência contra as mulheres está, de forma muito perversa, enraizada nas nossas expectativas societais. Estes cenários de violência são urgentes de serem tratados e percebidos, mas ao invés, são banalizados. Querem uns exemplos? Uma história que me incomodou especialmente foi de uma rapariga de 17 anos que foi assassinada pelo ex-namorado, depois de já ter tido feito queixa dele à polícia – ao que a polícia passou-lhe uma multa por julgarem que ela estava a desperdiçar o tempo deles com uma queixa que não lhes fazia sentido. Portanto, não só a polícia descredibilizou a preocupação da rapariga, como ela ainda teve que pagar uma multa, e mais tarde pagou com a vida. Querem mais? Uma mulher, mãe de três filhos decide pedir o divórcio porque já não aguenta o relacionamento com marido e ele mata-a e aos miúdos – e este marido nunca antes tinha mostrado um comportamento fisicamente violento e por isso esta mulher nunca teve o apoio formal (nem a protecção) para poder pedir o divórcio sem este desfecho.

Podemos pensar que o problema está na cabeça destes homens, por fazerem estes disparates, mas essa é uma explicação demasiado simplista. Não, o problema não está na cabeça só de alguns homens. Há uma cultura de desculpabilização que tende a ignorar – sistematicamente – tentativas de denúncia daquilo que será a violência de género. As estatísticas confirmam que só por seres mulher, sofrerás algum tipo de violência de género durante a tua vida. Não sou o tipo de pessoa que aceita que o género possa determinar o que quer que seja (leram o artigo da semana passada?). Por isso precisamos das mensagens de ânimo, dos hashtags, do apoio formal às sobreviventes de violência doméstica, de conversas, de abertura ao tema e de consciencialização. Precisamos de condições para que, mais do que denunciar a violência, possamos não correr riscos, só por sermos mulheres.

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