Clara Law e Eddie Fong, realizadores de cinema: “Sou uma nómada no mundo”

Clara Law e Eddie Fong são um casal que vive para o cinema. Ela nasceu em Macau e cedo foi para Hong Kong, onde conheceu o colega e companheiro. Actualmente, vivem na Austrália. Regressaram ao território para filmar o projecto que têm em mãos e como convidados do Rota das Letras. Ao HM, falaram das origens, do cinema e de como se cruzam nos filmes que fazem

[dropcap]N[/dropcap]asceu em Macau, mas não tem recordações do território.
C.L. – Saí de Macau aos dez anos. Não tenho memórias. A minha família era muito tradicional e eu não estava autorizada a sair de casa ou a andar nas ruas. A minha memória é a ida para a escola e o regresso a casa. Ocasionalmente, a minha mãe levava-me aos gelados e ao cinema ver filmes do John Wayne. Passava também muito tempo com a minha avó a ver filmes em cantonês.

Como é que o cinema apareceu?
C.L. – Formei-me em Literatura Inglesa na Universidade de Hong Kong. Depois do curso comecei a procurar trabalho e não me estava a ver num emprego das nove às cinco. Em dois meses devo ter passado por uns sete trabalhos. Depois falaram-me da Radio Television Hong Kong (RTHK) e que me podia candidatar para dar assistência na realização. Aproveitei a oportunidade e entrei. Assim que comecei a trabalhar, descobri o que realmente gostava. Foi uma paixão. A partir daí quis ir para uma escola de cinema. Queria fazer coisas escolhidas por mim e não vindas de outras pessoas. Fui então para a London Film Academy. Regressei a Hong Kong e conheci o Eddie Fong, que já tinha realizado dois filmes e escrevia guiões. Eu tinha uma ideia, mas não tinha dinheiro. Contactei-o e perguntei se podíamos fazer um filme, mesmo assim, e ele aceitou.

Desde o início da carreira, com “Autum Moon” e “Floating Life”, a questão da emigração e das origens está muito vincada. É de alguma forma uma questão pessoal?
C.L. – O nosso passado transforma-nos no que somos. Nasci em Macau e venho de uma família chinesa. Vivi aqui pouco tempo, mudei-me para Hong Kong e estudei em Inglaterra. É muito difícil dizer onde é a minha casa. O sentimento é o de não saber realmente de onde venho. Cresci com uma educação ocidental e chinesa. Na escola falava inglês e em casa era tudo muito tradicional. Há esta divisão cultural dentro de mim, fez parte do meu crescimento e fez com que não soubesse claramente onde estavam as minhas raízes. Este flutuar interno sem saber onde se está fez com que, mais tarde, fosse à procura da minha veia chinesa. Sou uma nómada no mundo. Não estou nem aqui nem ali.

E.F. – Quando vivemos em Hong Kong sentimos que não pertencemos àquele lugar. É um lugar sem história porque a história está toda na China Continental. O que aprendemos acerca do passado chinês não permite que compreendamos, de um ponto de vista existencial, de onde fazemos parte. Não há nada que possamos ver, tocar ou sentir como parte de um passado. É muito abstracto. Sou chinês, mas sou de Hong Kong, logo não sei bem quem sou. É estranho. Quando começámos a trabalhar no nosso primeiro projecto, estávamos no início da onda de emigração. O nosso primeiro filme era sobre um casal, em que um era ocidental e o outro oriental. Partilhavam a vida e o choque cultural era notório. Esta convivência era muito natural no dia-a-dia mas ninguém falava nisso, pelo menos no cinema. Há um termo especifico para estas pessoas, que na altura designava os académicos que iam para Hong Kong dar aulas e deixavam a esposa e filhos no país de origem: eram os “astronautas”. É um jogo de palavras na língua chinesa que remete para 太空人 – ‘taikongren’, em que ‘tai’ significa mulher, ‘kong’ vazio e ‘ren’ pessoa. A ironia é que, com a distância, as mulheres que ficavam no país de origem acabavam por se envolver com outras pessoas e os “astronautas” ficam sozinhos. Hoje em dia os tempos são outros. Já não há muitos “astronautas” em Hong Kong.

Clara Law

C.L. – Estamos na segunda vaga da diáspora. Há muitos jovens que começam a sentir que Hong Kong tem mudado muito e não é mais um lugar seguro para se viver. As terras e casas estão com valores que não são suportáveis para poderem ter as suas e construírem uma família. Sentem que têm de ir embora. É um tema sempre actual.

Como é que mantêm o contacto com as vossas origens?
C.L. – Tive uma fase, em Inglaterra, em que senti necessidade de ir à procura das minhas raízes de forma mais profunda. Comecei a estudar filosofia chinesa. No regresso a Hong Kong continuei a estudar e li muito, nomeadamente do pensamento que fundamenta a cultura chinesa: confucionismo, taoismo e budismo. Foi um processo para me levar a mim também. Por outro lado, já tinha coisas que identificava como vindas da minha família tradicional chinesa. Hábitos e rituais que aprendemos por os experienciar como o cuidado dos pais quando envelhecem, mas precisava de encontrar o processo de pensamento e foi o que fiz.

E.F. – Temos de fazer a viagem de regresso às origens e estas estão na história do pensamento chinês que, julgo, tem estado perdido nos últimos anos. O processo de afastamento começou com o último império. Com a continuação da história foi sempre a piorar. Basicamente, estamos a perder as nossas tradições de pensamento há perto de 700 anos. Por exemplo, em Hong Kong, ninguém fala sobre isso ou, se fala, não o fazem da melhor maneira porque não sabem. São poucos os que ainda tentam aprender as bases de uma forma real e investigam de uma forma aprofundada o que é que pode realmente significar a cultura chinesa. Este é um assunto que, na actualidade, deveria significar muito para o mundo em geral.

Ainda no âmbito da emigração e com olho nos processos de exílio e acolhimento de refugiados, fizeram “Letters to Ali”.
C.L. – “Letters to Ali” foi feito em 2004 e é totalmente um documentário ou, para ser mais exacta, um ensaio para um documentário. O filme aconteceu porque sentimos que havia alguma coisa na Austrália que estava muito mal depois de sabermos pelas notícias da história de Ali, um menino afegão à procura de exílio. 

A situação dos refugiados também é um assunto do momento. Como é que encaram a questão?
C.L. – Hoje em dia é uma questão mais complexa do que quando fizemos o filme. Na altura era mais clara. As pessoas que procuravam exílio não eram tratadas como humanos, mas sim como coisas que não deveriam existir. Penso que, actualmente, os refugiados não são políticos, mas essencialmente económicos. É também mais difícil definir o próprio termo. Por outro lado, o movimento de refugiados atingiu um número tão grande que as necessidades, além da aceitação do outro, passam por uma aceitação real da sua cultura e capacidade para a convivência. Não se pode acolher pessoas e depois não se saber como lidar com elas e com a sua cultura. A aceitação de refugiados deve ser acompanhada de uma estrutura de apoio e isso, penso, não está a acontecer da melhor maneira. Se aceitam pessoas e depois não sabem como as ajudar a reconstruir as suas vidas, os problemas aparecem e haverá sempre políticos a tomar partido da situação e prontos a lançar um apelo ao medo.

E.F. – O problema dos refugiados é apenas um sintoma. É como se olhássemos para um todo em que esta questão é apenas um sinal. Como na medicina chinesa, não é possível lidar apenas com o sintoma, é necessário tratar da sua origem. Penso que é claro que na raiz está o cada vez maior abismo entre riqueza e pobreza. Ninguém quer deixar o país de origem e as suas raízes mas, quando as pessoas não têm como comer e estão em guerra, são forçadas a procurar um espaço onde possam sobreviver. Ouvimos tantas histórias de pessoas que só querem regressar a casa dadas as dificuldades culturais.

Como é que apareceu a ida para a Austrália?
C.L. – A minha família tinha emigrado para lá e, numa visita, decidimos ficar. Naquela altura, os nossos filmes “Autumn Moon” e “Tentation of the Monk” tinham participado num festival na Austrália e tiveram críticas muito boas. Acabámos por ter produtores a procurarem-nos e a querem trabalhar connosco. Tínhamos uma história que queríamos fazer, seleccionámos uma produtora e fizemos o filme. Foi tudo muito natural. A Austrália, de uma forma geral, é um país simpático e, em Melbourne, conseguimos sentir um certo sentido de comunidade. Se falarmos de multiculturalismo, penso que é um sítio em que se pode vivê-lo realmente.

E.F – Em Hong Kong, a indústria cinematográfica estava a apoiar essencialmente filmes mainstream e não era o que queríamos fazer. Andamos sempre numa espécie de margem. Tentamos ter algumas ideias mais comerciais porque queremos vender os filmes mas, ao mesmo tempo, queremos dizer alguma coisa com o nosso trabalho.

Este regresso a Macau para filmar e participar no festival literário é também o primeiro após a partida. Um filme no território onde nasceu marca um regresso às origens?
C.L. – Sim. O filme acaba por falar de alguém à procura das origens. Tive de voltar para procurar a minha infância em Macau. O engraçado foi mesmo a quantidade de memórias que vieram ao de cima. Por exemplo, fomos a um restaurante português e deram-nos pão com manteiga. O sabor daquela manteiga, um produto que geralmente não gosto, soube-me a infância. A casa onde vivia já não existe, mas tem feito parte dos meus sonhos e já consigo visualizar a rua.

É uma mulher de sucesso no cinema. Acha que é uma área ainda feita essencialmente por homens ou considera que a tendência está a mudar?
C.L. – Nunca pensei sequer que, por ser mulher, seria privada de fazer o que quer que fosse. Sempre achei que faria o que queria e que ninguém me poderia parar. Na estação de televisão não sabia como fazer as luzes, então ia estudar o que sentia que me fazia falta saber. Com o conhecimento vem a confiança e nada nos pode parar. Já sei fazer tudo o que é necessário para filmes.

E.F. – Por termos vivido tanto em Hong Kong, mais uma vez enquanto lugar particular, não sentimos muito as questões de género. Quando nos mudámos para a Austrália sentimos mais a diferença de tratamento. Por exemplo, quando íamos ao banco, o funcionário olhava sempre para mim e eu nem entendia, porque não olhava para a Clara. Notava-se claramente que era suposto ser o homem a tomar as decisões. Estranhámos muito isso.

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