Fortaleza Europa

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á um risco muito sério de a Europa deitar por terra quase 60 anos de integração política e os valores liberais que a têm marcado. Seis décadas após a constituição da Comunidade Económica Europeia, solidariedade, igualdade e fraternidade são chavões pouco populares. Esta deriva iliberal tem acontecido um pouco por toda a Europa, quer a ocidente quer a oriente, mas tornou-se evidente quando o Reino Unido votou pela saída da União Europeia em Junho do ano passado.
Isto tem acontecido quer por acção quer por inacção. Por acção, por exemplo, as vedações construídos pela Hungria, nas suas fronteiras, para evitar que os refugiados por lá passassem a caminho da Alemanha e dos países nórdicos; por inacção, por exemplo, dos governos que se comprometeram a acolher no prazo de dois anos 160 mil refugiados que se encontram na Grécia e em Itália. No início deste mês, tinham apenas recebido pouco mais do que 14 mil pessoas, ou cerca de 9 por cento do total com que se haviam comprometido. O programa de recolocação de refugiados, que começou em Setembro de 2015, foi adoptado pelo Conselho Europeu com o objectivo de aliviar os governos de Atenas e de Roma da pressão migratória de milhares de candidatos a asilo que estavam então a inundar a Europa. A probabilidade de os Estados-membros da União Europeia cumprirem a promessa de acolher os restantes 146 mil nos próximos sete meses parece muito pouco provável.
A Europa está pois, paulatinamente, de eleição em eleição, de medida em medida, de lei em lei, a transformar-se numa espécie de fortaleza, incapaz de receber quem lhe bate à porta e incapaz de integrar os outros europeus.
A Áustria que esteve recentemente à beira de eleger o primeiro presidente de extrema-direita na repetição uma segunda volta eleitoral controversa, acaba de adoptar legislação laboral em que se privilegia os trabalhadores nacionais em relação aos estrangeiros. Privilegia? Melhor seria escrever “discrimina os trabalhadores estrangeiros”, pois é disso que se trata, de uma discriminação.
Na Holanda, que vai a votos no dia 15 de Março, o Partido da Liberdade, de Geert Wilders, com um discurso anti-imigração, anti-islâmico, está à frente nas sondagens. Não é por isso de estranhar que a força política que segue em segundo lugar nas sondagens, o Partido Popular para a Liberdade e Democracia, do primeiro-ministro Mark Rutte tenha definido a contenda eleitoral como uma luta pela “identidade”. Da Holanda, dos holandeses, dos valores que o país abraça.
E em França, Marine Le Pen continua a subir nas sondagens.
Enquanto, nos Estados Unidos, Donald Trump promete erguer mais barreiras, quer à circulação de pessoas – a vedação com o México já existe em quase 1200 quilómetros, vem aí agora o muro – e de mercadorias – a promessa de cobrar tarifas de 45 por cento sobre certos produtos oriundos da China ainda não foi alvo de uma ordem executiva, mas também não parece ter sido abandonada –, na Europa essas barreiras parece que já têm alguns metros de altura.
Neste fim-de-semana, um antigo colega meu em Portugal, que vive há anos na Estónia, tornou pública, no Facebook, uma certa aversão que os estónios sentem pelos estrangeiros. A coisa piorou tanto que já é visível nos bares, em que, ao final do dia, os imigrantes são perseguidos e ameaçados, sem que ninguém intervenha para acalmar os ânimos.
Esta falta de entusiasmo no acolhimento tem levado, por exemplo, milhares de iraquianos que chegaram à Europa no pico da crise migratória a regressar à sua terra. O New York Times deu à estampa há dias uma reportagem, com nomes, com rostos, com imagens, de iraquianos que não aguentaram o ambiente hostil em que foram recebidos e voltaram a casa. Alguns estavam na Finlândia. A Organização Internacional para as Migrações reconhece que só no ano passado ajudou 3.500 iraquianos a deixarem a Europa de regresso ao Médio Oriente.
Os muros estão construídos. E não vão desaparecer durante uma noite, deitados abaixo por hordas de europeus empenhados na solidariedade, fraternidade, na igualdade, na internacionalização. A Europa está a fechar-se sobre si própria.
Temos vivido em quase permanente crescimento económico durante décadas. Estamos hoje melhor do que quando os nossos pais tinham a nossa idade. Trabalhamos menos horas do que eles trabalhavam e ganhamos mais por isso. A entrada em circulação do euro ocorreu há quinze anos. Para muitos jovens, a realidade do euro é a única que conhecem. Os universitários do programa de mobilidade Erasmus, que têm agora 20 e poucos anos, não têm memória do escudo, peseta ou franco. Assimilámos ao longo das seis décadas de integração europeia que somos europeus. Temos um passaporte que nos lembra isso. Os cursos superiores obedecem todos às mesmas regras de validação. A divisa que usamos é a mesma numa maioria de Estados. As marcas da roupa da moda estão disponíveis em todas as grandes cidades europeias. E ao mesmo preço. Os salários e os impostos é que ainda são muito diferentes… Os tempos da viagem fácil, da deslocalização – o termo imigrante foi dando lugar ao termo mais vago e menos negativo de expatriado – e do dinheiro barato parecem um longínquo passado.
A realidade é que temos dado por adquirido algo que pode estar à beira do colapso. Este estado de coisas parece não ser permanente. A crise financeira, económica e social de 2008 não passou. As suas ondas de choque continuam a ser sentidas, com esta reacção social contra o que não é daqui, aquele que é de fora. Os anos da internacionalização que marcaram a segunda metade do Século XX e os primeiros anos do Século XXI parecem fazer agora parte de uma memória feliz de um tempo em que a vida era mais fácil.

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