h | Artes, Letras e IdeiasO preço das casas Paulo José Miranda - 15 Nov 2016 [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]orria o ano de 2002, e a editora Gótica lançava um livro de poesia chamado O Preço das Casas, de Joaquim Cardoso Dias. Livro com 62 páginas e 40 poemas, divididos em duas partes: “Entrada de Emergência” e “De Uma Porta à Outra”. O título, somado à inscrição de Ruy Belo, antes do início do livro – Só as casas explicam que exista / uma palavra como intimidade – sugere-nos logo uma leitura junto da fenomenologia. Embora o preço das casas, a que o título se refere, também seja o preço de mercado, o preço que pagamos pelo imóvel, o preço que pagamos com o suor do corpo, o preço das casa aqui é antes de mais o preço da intimidade que nasce entre quatro paredes, o preço da intimidade que nasce entre um coração e outro ou, melhor seria dizer com Cardoso Dias, o preço da intimidade que nasce entre um animal que cheira outro animal – escreve o poeta à página 28, no poema “Another Shade Ten Minutes”: “(…) onde um animal olha outro animal olhando-lhe (…). No fundo, o preço das casas é o preço de amar. Mas o que é amar, neste livro, e que se adivinha que também seja na vida? Esta pergunta – o que é amar – lembra-me sempre um verso de Pedro Tamen: “Amor, é amar”. Aquela vírgula ficou para sempre no meu coração. E aqui neste livro de Joaquim Cardoso Dias a pergunta não é menos pertinente. Começa assim o livro, com o poema “Sem Mentir”: ainda não sei se o amor esteve aqui de luz acesa e se caminhou nu toda a noite pelo tecto do quarto mas eu tirei a roupa toda bebi água e não te telefonei qualquer coisa assim atirou-me de bruços para o coração e lembrei-me de te esquecer desde o começo muito longe e alto nas escadas de incêndio foda-se como acreditar que te amo sem mentir Poucos são os livros com começos tão felizes como este. De uma felicidade amarga, como toda a felicidade revisitada – “(…) Nessun maggior dolore / che ricordarsi del tempo felice / ne la miséria (…) / Não há maior dor / que recordar o tempo feliz / já na miséria” (Dante, Divina Comedia, Canto V, vv. 121-23). E o que é um bom poema, se não uma felicidade revisitada? Mas este poema dá-nos o tom do livro, em quatro penadas: uma casa vazia, a noite onde não se dorme, o amor que só tem carne e por isso estraga-se, e a necessidade imperativa de mentir, não só para que o amor exista, mas também para que a vida exista. Escrever poemas aparece logo no início do livro, como a arte superior de mentir. Porquê superior? Porque admite para si mesma a sua essência longe da verdade. Leia-se este poema de uma cintilação rara, “Enquanto A Noite”: não tenhas medo é tudo o que sei fazer duas das minhas mãos pelo teu cabelo enquanto a noite essa idade onde descreveras o calor à volta de mim e um pouco mais sei por isso quem morre neste poema Escrever é mentir, viver é mentir-se. E, entre as mentiras da escrita e da vida, há apenas a beleza; a beleza dos versos, como o início deste poema, e a beleza dos corpos, capazes de descreverem o calor à nossa volta. Ponto de vista este que é reforçado no poema “Mitologia”: “finjo que acredito em ti: amo-te /e sem o saber todos os sonhos / caíram no fim das tuas palavras antes da única verdade / se ter ferido encostada tanto / ao meu peito”. A única verdade: o corpo, a beleza. Há um verso de Ruy Cinatti, que ecoa aqui com uma força ainda maior: “Quem não me deu Amor, não me deu nada” – este livro de Cinatti, O Livro do Nómada meu Amigo, é aliás um livro que brilha na escuridão destes poemas. Mas aqui em Cardoso Dias, poderíamos traduzir para: Quem não me deu Beleza, não me deu nada. Pois o amor é apenas parte inexistente, ou desconhecida, da beleza. Assim, o preço das casas é o preço dos corpos, o preço da beleza, o preço daquilo que faz a vida ser vivida, que faz a vida valer a pena, que faz, no fundo, a vida ter preço. Escreve o poeta em “Salsugem@hotmail.com”: “um segredo é a alquimia mais sincera / uma contradição comum com interesse individual // neste sentido amo-te tanto e amo-te muito // e publicar esta ausência contrária / é um erro trágico que irei pagar com o teu corpo.” Esta contradição comum com interesse individual, com que o poeta nomeia o segredo, essa sinceridade única, que é o silêncio que une dois corpos, e condenada a acabar assim que se enuncia, é também a vida. A vida é um segredo. Do ponto de vista da técnica, aquilo que mais salta aos nossos olhos, é a duplicidade do verso, como no poema “Mitologias”: “e sem o saber todos os sonhos / caíram no fim das tuas palavras (…)” No primeiro verso somos levados a pôr uma vírgula entre “saber” e “todos”, acabando por ler: e sem o saber, todos os sonhos… Mas o poeta não quis a vírgula porque não quer que se leia apenas assim, quer também que se leia: e sem o saber todos os sonhos… Mesmo sem saber todos os sonhos, ou sem saber “todo” o que seja, que é a condição humana, tudo nos cai ao chão, tudo cai ao chão, como no poema de Dylan Thomas. Terminemos com este poema de Joaquim Cardoso Dias: O PREÇO DAS CASAS não foi ao mesmo tempo uma viagem o mesmo ar entre o teu sorriso ou esta navegação politica da idade mas eu acreditei em tudo desde a primeira vez em que estivemos juntos eu dava meia volta e a lua lá estava durante o sono no meu espelho de atravessar os mares iludindo a vontade de chorar até a temperatura se tornar insuportável na interpretação quase televisiva do mundo de repente pouco sabíamos um do outro e a sensibilidade ficou assombrosamente maior por denunciar a minha barba cada vez mais insistente agora só o teu corpo consegue despir-me agora posso sonhar até deixar de ter e teremos perdido tudo por engano amor e durmo contigo sem ninguém ver esta rosa do fundo da minha cabeça dormirei contigo esta noite aqui devagar onde atiro pedras a todos os sentidos apago a luz e espero o sono as pálpebras limpam este desejo no movimento da respiração já não tenho comprimidos para te esquecer Joaquim Cardoso Dias publicou recentemente um novo livro de poesia com o título Pornografia Doméstica, pela editora Gulliver. E, tal como O Preço das Casas, também já está esgotado.