Projecto do Teatro Meridional sobre Macau em cena até Novembro

Maria João Belchior

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a sala, a primeira luz ilumina uma névoa. É a imagem inicial de um Oriente mágico que estamos prestes a conhecer ou, quem sabe, a primeira pista de um caminho que nos leva à recordação de Macau, onde chegámos há muito tempo. A mais recente produção do Teatro Meridional – “Macau” – entrou em cena a 12 de Outubro, em Lisboa, onde vai ficar até 6 de Novembro. A palavra, a dança e a música unem-se na evocação de um lugar real e tantas vezes imaginado. E o resultado é sublime.

Em palco, o actor Romeu Costa, a bailarina Margarida Belo Costa e o músico Rui Rebelo personificam uma ideia de Macau, um lugar no Oriente que se nos apresenta como resultado de fragmentos e memórias de uma viagem feita a primeira vez há muitos séculos. Na História, Macau, o sítio, ficou gravado no tempo também através da escrita de contos, romances e poemas, por autores portugueses e macaenses. Agora, em Lisboa, ouvimos essas histórias. A dramaturgia, trabalho da encenadora Natália Luiza, traz-nos um texto final, fruto de uma selecção que juntou 22 autores. E é pela voz de Romeu Costa, pelos movimentos dançantes de Margarida Belo Costa e pela música composta por Rui Rebelo que a viagem começa e prossegue num enriquecimento que nos surpreende até ao fim.

<h4>Do bazar ao tancá</h4>

Em passos largos, Romeu Costa atravessa o bazar. No espaço cénico imaginamos um mercado. Ouvimos os vendedores. A bailarina, a vendedora chinesa, transporta os cestos que olhamos como cheios de coisas. É ela quem cativa o ocidental, é ela o “outro” que encanta num fascínio pelo exótico que representa. Os colares de contas entrelaçam-se, giram entre si. Romeu Costa abre a sombrinha de papel e segue caminho nas suas palavras que nos transportam à lenda de Wong Mei. O conto de Deolinda da Conceição projecta-se numa sombra. Do outro lado da fina cortina, a bailarina, agora na figura da pobre chinesa castigada a ir buscar água à fonte, surge recortada na perfeição. Numa contraluz, a sombra da sua silhueta entrança-se na realidade das palavras de uma lenda que se passa entre este mundo e o outro. Entre a terra e o céu dá-se um casamento. Soam os panchões, saltam os papéis vermelhos da fortuna e a música prolonga a história. Até hoje, a gente da terra continua a ir àquela fonte de água na busca de encontrar a sorte.

A peça teatral e a música nasceram de uma raiz comum – Macau. “Estive perfeitamente livre para criar”, diz Natália Luiza, a encenadora que investigou a prosa e a poesia por autores portugueses e macaenses. Do resultado surgiu muito material onde a dificuldade “prazerosa” foi encontrar um sentido entre os textos que os relacionasse uns com os outros. É verdade que há um caminho mas, mais certo ainda, é que não é só um, uma vez que os diferentes tempos de escrita retratam mais do que uma Macau. A do tempo antigo, a do patuá, a dos tempos da Guerra e do pós-II Guerra, a Macau moderna, a Macau das lendas e a cidade dos factos e dos números. Poetas, escritores, cronistas, bloggers, são vários autores na voz de Romeu Costa, sempre em palco com a bailarina que não cessamos de seguir na sua perfeição de movimentos. Dança, balança, caminha em passos curtinhos. É a mulher de um Oriente que nos “deixou cativos”.

O tempo não se lê num sentido cronológico em que o peso aparente do passado se reflecte no presente. No casino, é Bocage quem fala, mas também Rai Mutsu, um blogger contemporâneo. As narrativas da tradição oral, recuperadas, entre outros, pelo escritor Wenceslau de Moraes, relembram-nos Darumá e a origem do chá. Coisa santa, como se vê. Tudo flui – palavra, luzes, sombras, movimentos, melodia. Ao fundo, Rui Rebelo toca flauta chinesa, um entre vários instrumentos que viajaram especificamente para este espectáculo. Os gongos chineses, as flautas e o erhu vão soando, qual deixa que oferece uma nova direcção à nossa imaginação.

<h4>Macau sã assi</h4>

Maria Ana Acciaioli Tamagnini, Altino do Tojal, Camilo Pessanha, Benjamim Videira Pires, Maria Ondina Braga, José dos Santos Ferreira, Henrique de Senna Fernandes, Deolinda da Conceição, Carlos Frota, Alberto Eduardo Estima de Oliveira, Fernanda Dias, entre vários outros nomes, surgem na folha de apresentação que lemos antes de entrar na sala. São parte inalienável do conjunto de escrita que inspirou o texto final.

Mas “Macau” não é para ser visto em sentido literal. São “evocações”, explica a encenadora do Meridional, Natália Luiza. Do texto, partiu-se para a música, imaginada por Rui Rebelo especialmente para este espectáculo. Tal como a dança. Trata-se de um “trabalho em conjunto” que traz ao público em Lisboa um leque de autores que muitas vezes já só se encontram em bibliotecas.

O patuá, num poema de Adé (José dos Santos Ferreira), chega-nos como numa canção onde há quem tente reconhecer algo familiar. É do “Poéma di Macau”, estórias dentro da história da própria língua no território. Guardamos os versos e embarcamos no destino que nos levou até ali. Seguimos com a lenda de A-Chan, de um livro de Henrique de Senna Fernandes. No tancá pressentimos quão frágil é a história daquele amor. Nasce Mei Lai, a pequena criança, que a tancareira passa ao soldado que regressa ao seu país. Ficamos atentos a ver como a tinta-da-china fica mesmo gravada na pele. Da beira-rio à casa de chá, da rua animada ao bazar, da vendedora à máscara chinesa, da cortina com sombras ao templo, do real ao imaginado, não demos pelo tempo a passar. Foram séculos, agora contados numa escrita poética para ser ouvida.

<h5>O teatro ao encontro do mundo</h5>

Fruto de um trabalho de pesquisa da língua portuguesa e da sua escrita poética, ficcional e de prosa, o projecto Contos em Viagem, concebido pelo Teatro Meridional, nasce em 2006 com a primeira peça “Brasil”. Em 2007, apresenta-se “Contos em Viagem – Cabo Verde”, e, no ano 2009 “Contos em Viagem – Brasil, Novas Rotas”. “Macau” é parte do projecto que continua com o conceito de uma viagem literária a partir de textos não dramáticos. A escolha de virar para Oriente vem ao encontro de diminuir um “desconhecimento que a nossa passagem cultural por Macau teve, e continua a ter, em termos da produção literária aí escrita e desenvolvida.” O Teatro Meridional comemora em 2017 o seu 25º aniversário.

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