Pequim, 7 de Julho de 1978

António Graça de Abreu

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Sporting está na China.
Depois de vencer o Porto por 2-1, na final da Taça de Portugal aí veio a rapaziada verde a caminho de Pequim. Trouxeram uma grande comitiva, 41 personagens entre jogadores, dois árbitros, fotógrafos, jornalistas e figuras públicas
Como não há ainda relações diplomáticas, foi o PCP (m-l), único partido reconhecido pelo PC chinês, quem mexeu os cordelinhos para a concretização da viagem e, para dar sequência ao trabalho, cá estão os militantes Carlos Ricardo e Mourato Costa, meus amigos nas lides partidárias em Lisboa, com o disfarce de serem dirigentes da ADAPC (Associação Democrática de Amizade Portugal-China). O Eduíno Gomes (Vilar), secretário-geral do PCP (m-l), também é um grande sportinguista. Tudo tem funcionado quase na perfeição. Veio também o Veiga Simão, antigo ministro da Educação de Marcelo Caetano e ex-embaixador na ONU e hoje próximo do PS, como uma espécie de chefe da delegação desportiva, mas com uma missão política semi-secreta, a de entregar uma carta do nosso presidente Ramalho Eanes endereçada ao Hua Guofeng ou ao Deng Xiaoping saudando os homens mais poderosos da China e solicitando os bons ofícios de ambos para o rápido restabelecimento das relações diplomáticas.
O futebol foi divertido, uma vitória de 2 a 0 sobre a selecção da China e um empate 0 a 0 com a equipa de Pequim. Os chineses já dão uns bons chutos na bola e gostei de ver o Estádio dos Operários de Pequim cheio como um ovo, eram mais de 100 mil chineses entusiasmados, a aplaudir.
No fim do segundo jogo tive a sorte de regressar do estádio para o hotel Pequim — onde os jogadores e comitiva estão alojados –, viajando no autocarro juntamente com os craques verdes, o Manuel Fernandes, o Inácio, o Laranjeira, o Artur, o Jordão (que chegou de canadianas à China, por estar em recuperação de uma perna partida).
O presidente João Rocha, que percebeu viver eu em Pequim, veio, em privado, fazer-me uma pergunta singular. Queria saber onde poderia comprar uns pós chineses, milagrosos, que faziam maravilhas no revigoramento sexual masculino. Não era para ele, tinha sido o pedido de um amigo. Eu até pensei que poderia ser para dar aos jogadores que assim ocupariam melhor os tempos livres. Creio que se tratava de uma mezinha explosiva elaborada a partir de corno de rinoceronte, produto caro, às vezes falsificado, de facto à venda em farmácias de medicina tradicional chinesa, mas eu não era especialista na matéria. Disse ao João Rocha para falar com os intérpretes da comitiva, eles próprios poderiam tratar da compra da droga benfazeja. Ignoro qual foi o resultado.

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No estádio dos operários toda a equipa do Sporting foi recebida e cumprimentada pelo general Chen Xilian (1915-1999), um velho combatente da guerra contra o Guomindang de Chiang Kai-shek (participou na Longa Marcha!) e contra os japoneses, hoje membro do Politburo do Partido Comunista da China, comandante militar de Pequim e um dos vice-primeiros ministros. Tudo isto é sinal da importância que os chineses deram à visita do Sporting, alargando a via que conduzirá em breve ao estabelecimento das relações diplomáticas.

Beidaihe, 21 de Julho de 1978

Estou na praia, de férias, com a gente das Edições em Línguas Estrangeiras, em Beidaihe, numa estância balnear duzentos quilómetros a nordeste de Pequim.
A vila abre-se numa sucessão de pequenas baías no mar de Bohai — águas interiores do grande Oceano Pacífico –, aconchegadas pela natureza, as areias ao sabor de marés docemente recatadas.
Na vinda, o comboio atravessou a cidade de Tangshan arrasada pelo tremor de terra em Julho de 1976. Há dois anos atrás, a China Comunista foi abalada pela morte dos seus três maiores governantes, morreram as pessoas, as inteligências sinuosas, os homens que encabeçaram o longo processo revolucionário que, em 1949, culminou com a fundação da República Popular da China. Em Janeiro de 1976 faleceu o primeiro-ministro Zhou Enlai, o companheiro sempre fiel a Mao que pôs em execução quase todas as medidas políticas que, para o bem e para o mal, modelaram a Nova China. Em Junho, chegou a hora final do marechal Zhu De (Chu Teh), o supremo comandante militar e estratega da revolução chinesa. Em Setembro, desapareceu para sempre Mao Zedong, o revolucionário determinado e implacável que levou a nau da revolução comunista a bom porto e depois, como timoneiro, foi protagonista de devastadores naufrágios.
O terramoto de Tangshan, cidade situada a setenta quilómetros das praias de Beidaihe, provocou 260.000 mortos numa urbe habitada por um milhão de pessoas. 1976 foi o ano do Dragão, com convulsões na terra chinesa, centenas de milhares de mortos, o desaparecimento dos três maiores dirigentes do Partido e do Estado, tudo sinais dolorosos da chegada ao fim de uma época. A China começou a mudar.
Há três dias atrás, ao passar por Tangshan, atravessei ainda um gigantesco amontoado de ruínas. O comboio caminhou ao longo de três ou quatro quilómetros entre o que haviam sido ruas, casas, armazéns e complexos industriais. Tudo devastado, destruído, paredes solitárias, escombros, estruturas retorcidas, pedras e mais pedras amontoadas no sopé das habitações de outrora. Os olhos diante da catástrofe e da morte.
Chego a Beidaihe. Trouxe a minha bicicleta que viajou no furgão do comboio e me foi entregue impecavelmente protegida por tiras de cartão canelado. Sou alojado num complexo turístico destinado a quadros do Partido Comunista. Dá para comprovar — para o meu cada vez menos ingénuo espanto –, as mordomias e privilégios de que se rodeiam os homens importantes, ou tidos como tal, dentro do aparelho de Estado. Têm direito a muitos luxos, habitações confortáveis, seguranças pessoais, criados e criadas.
Destinam-me um quarto espaçoso, meio espartano mas confortável e funcional, com um jardinzinho à frente, logo depois a praia de areia fina.
Mergulhos nas águas tépidas do Oceano Pacífico, caminhar ao longo do recorte das baías, pelas bermas do mar, encontrar os pescadores que ao entardecer saem para a pesca e, de noite, pintalgam a superfície do oceano com as luzes fortes suspensas dos lampiões dos barcos descendo sobre a água, para chamar o peixe.
Tenho bicicleta e rodas para andar. Quilómetros e quilómetros a pedalar pelas estradinhas em volta de Beidaihe, para entrar por dentro de aldeias de camponeses, por milheirais, campos de sorgo, para beber uma chávena de chá com esta gente, fotografar velhos e crianças, e continuar viagem. Subo ao pavilhão da Pomba Branca. Do alto, debruçado sobre o oceano, o sucessivo estendal das ondas, as águas avançando num rendilhado suave sobre as areias da praia, a imensidão do oceano e um poema que Mao Zedong escreveu exactamente aqui, neste torreão sobre o mar, no Verão de 1954. Traduzo:

Beidaihe

Cascatas de chuva nas terras do norte,
ondas brancas sobem até ao céu.
Os barcos de pesca, para além de Qinhuangdao,
desapareceram no imenso oceano.
Navegaram para qual lugar?
Há mil anos, Wu, o imperador de Wei
brandiu o chicote, viajou para Jieshi, a leste.
Da sua viagem permanecem apenas os poemas.
Hoje, o vento de Outono ainda me entristece,
mas como o mundo mudou…

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