Terra Queimada

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]ostamos dos destinos que se desprendem das coisas que herdaram, dos que numa só existência sobem as montanhas com seus cascos, por vezes ensanguentados, e sobem-nas, não para ficarem mais altos, mas por que na montanha não há ninguém. Ninguém para nos afastar da lembrança, nada para nos entreter, coisa alguma que nos dite as horas para além do Sol invencível repetindo-se em disco e pondo-se radioso. Olhar o nosso rosto é quase ver um deus, e se falarmos às pedras elas seguramente nos responderão, e se falarmos às ervas elas cantam, e se chegarmos de longe toda a paisagem nos saudará. É um plano cósmico de taumaturgos tempos onde tudo comunica.
Na ânsia de fugir à turba, Moisés foi para o Sinai, Jesus para o deserto, Buda para debaixo de uma árvore, Francisco foi falar com os lobos, e todos a pretexto se foram para longe com acasos que acabaram por ser leis, pois tudo valia a pena desde que descansassem junto das cobras, das nuvens e dos dentes afiados. Estar disponível para prosseguir surge-nos como um desafio assombroso, pois caso não o saibamos trilhar o próprio destino se esfarrapa no asfalto dos dias.
Nem sempre entramos num templo dourado como nos nossos sonhos, que contra todas as probabilidades, alguns e algures, souberam e soubéramos conquistar, Moisés nunca entrou na Terra Prometida, apenas dela a visão dourada….. entrar nas coisas é uma conquista do real, pois há quem entre pelo real adentro sem nunca ter tido um sonho, uma vontade, uma ânsia de um depois, há quem se sente nos Banquetes do Mundo como um jumento entre catedrais, que não ultrapassará o estádio do verme que se deleita.
Esgrimamos todos os dias a vida, o nosso sabre está gasto, os nossos reflexos agem num desassossego de vozes que não conseguimos filtrar…a vertigem impele-nos para baixo, porque os abismos são fundos e atrativos na passagem, e nessa marcha há vagas de condenados a quem ilusoriamente damos as mãos numa velocidade tão medonha que parecemos parados, os nossos sentidos mais finos desaparecem, vamos como que atraídos por força magnética, se nos tocarem arrancam-nos pedaços, se nos largarem de mão, não reparamos na mão que se segue, que nunca é aquela que faz reverter a marcha. O estrado deste estertor é um enigma, pois que ninguém de lá volta para dizer como foi, nada contraria a gravidade e não se faz subir de novo a maçã à árvore.
Séquitos de filoxeras esverdeadas são postas nas trincheiras coladas como lapas aos pedregulhos de uma nação dinástica, de um país de sátiros, uma lei da descendência ao serviço da causa pública, uma ralé arcaica e branda, plena de insidiosos propósitos que ofendem toda a estrutura. Os comedores de pedras, os grandes ogres do fantástico que se emolam numa impune frialdade . …. Quando resolvemos fugir, nem uma fonte encontramos como retábulo, ordenham-se em pastos os rebanhos que os lobos já não comem- nem os bebedores de leite têm sede-: aquela paisagem das «Falésias de Mármore» de Ernest Junger em que as serpentes emplumadas vinham pela noite beber leite, elas tiravam-no a alguém, mas perante o fascínio de tal visão quem era o homem para matar aquela cena quase divina? Que espécie de divindade somos nós para retirarmos o manjar das víboras?
A Terra não fora pensada para a proliferação em massa do Homem, não fôramos eleitos para tal finalidade e fomos construindo um casulo à base de todas as distâncias. Estar com o Homem é estar desprotegido «Ah, o Homem, o Homem, o Homem é o que precisa ser vencido.»
Do alto de uma ideia transformada não desçamos nunca mais, o que vai ruir está programado, e tudo ruirá. Saber passar o estreito sem nos questionarmos do sentido pois que são raros os resgatados, e como sempre, lhes acontece algo como nos raptos: não fora assim com Elias no seu carro de fogo? Depois de uma longa depressão ele partira de forma abrupta, sem paragem, para nunca mais não ser visto.
O fogo alastra, a harmonia desfez-se , servir doravante com taças frias, levantar voo e deixar os restos para os chacais e as hienas, cobrir de negro as mesas, e que venham comer as últimas iguarias, não olhar para trás, que as necrópoles são chagas a céu aberto.
– Um esplendor luminoso irrompeu pela claridade azulada do jardim, eram as víboras lanceoladas que, fulgurando como relâmpagos, saíam das suas fendas. Deslizavam por sobre os canteiros como correias reluzentes de um chicote, e o ímpeto com que progrediam provocava um torvelinho de pétalas – «Sobre as falésias de mármore».
Estamos na tranquila Estação e deste Verão restam cinzas ainda em brasa… restos de fuligem, muito ignição na frente quente desta mudança climatérica, vivemos a sede, a fúria, a imensidão. Dilatados e expandidos, a nossa alma ficou a um canto como os vestidos antigos, e, nestes instantes apetece vesti-la de Baile e festejar o seu regresso, cansados de ardor e nudez, à boa maneira das víboras bebedoras de leite que pelos caminhos foram largando a pele.
Ernest Junger foi um veterano de guerra. Tendo sido aliciado vezes sem conta para o lado nazi, não só resistiu, como também se recusou a entrar para a Academia alemã de poesia dominada por eles. Não foi fácil tais opções para um homem que teria certamente sido mais bafejado perante uma sociedade que o apreciava, após o atentado a Hitler e a prisão do filho Ernest por oposição aquele, Junger deixa o exército. O estudioso de insectos, que via o mundo a partir de orientações microcelulares, inspira-nos pela coragem, aventura e brilhantismo ao lidar com títulos e temáticas. Se uns são «Falésias de Mármore», outras são «Abelhas de vidro», e sempre que nos diz que “o melhor concede-nos os deuses gratuitamente.”
Vem alertar-nos agora para as múltiplas etapas do Incêndio e outra vez seria bom percorrermos-lhes as rotas, não esquecer o seu trilho e não estarmos tão atentos à ginástica, que com ferimentos de guerra, exílios, injustiças e duras batalhas, o corajoso Junger chegou aos cem anos.
E porque a «Terra Queimada» se reergue e a vida retoma o ciclo, lembremos o terror de Junger acerca do Nacional-Socialismo em marcha: «Era sobretudo o espírito plebeu do movimento que lhe repugnava. O instinto aristocrático de Junger era de uma finura delicadíssima». Esta intuição está plasmada em «Falésias de Mármore».

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