PolíticaL’étranger Leocardo - 15 Set 2016 Não se esqueçam da hospitalidade; foi praticando-a que, sem o saber, alguns acolheram anjos. Hebreus 13:2 [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]uitos se recordarão certamente do despedimento de Eric Sautedé, o professor de Ciência Política da Universidade de S. José que foi saneado por aquela instituição de ensino superior por “emitir opiniões de natureza política”. Esta foi mesmo uma das manchetes de um periódico em Portugal: “Professor de Ciência Política afastado por emitir opiniões de natureza política”. Um paradoxo que teria a sua piada caso não fosse trágico para a imagem da instituição que tomou esta decisão e para a própria imagem do território. Por mais que a memória seja curta, por mais ombros que se encolham e por mais que se olhe para o lado, há dois anos foi posta a xeque uma das garantias contempladas pelo segundo sistema que vigora na RAEM: a liberdade de expressão. No mesmo ano tivemos o caso de Bill Chou, outro professor da mesma área que viu a sua relação laboral com a Universidade de Macau terminada, naquele que foi o “annus horribilis” para o primeiro executivo liderado por Chui Sai On, e que culminaria com a realização do infame “Referendo Civil”, e logo por altura da sua eleição para um segundo mandato como primeira figura política da RAEM. Não terá sido por acaso que a tão aguardada remodelação do elenco governativo efectuada em Novembro seguinte incluíu mudanças na pasta responsável pela educação. Aquele que anda com os sábios, será cada vez mais sábio, mas o companheiro dos tolos acabará mal. Provérbios 13:20 Conheci Eric Sautedé na sequência dessa sucessão de eventos, mais por iniciativa dele, que terá ficado com curiosidade em saber quem eu era, uma vez que dei um grande plano ao incidente no meu blogue. Fiquei a conhecê-lo a ele e à sua encantadora esposa Emilie, também ela docente na mesma Universidade, e a este ponto gostava de reafirmar que conhecia ambos da televisão e da imprensa escrita, onde eram frequentemente auscultados em relação a temas relacionados com a actualidade política do território, mas desconhecia o facto de serem casados um com o outro. Um casal de gente culta, educada, diria mesmo humilde, atendendo quer ao “background” de ambos, quer à bagagem cultural que revelavam, em suma, nada que me desse a entender que se tratava aqui de uma dupla de agitadores, fraccionistas ou como ainda alguém sugeriu, “espiões ao serviço da França” – é preciso ter bastante imaginação. Mesmo os comentários que alegadamente estiveram na base do afastamento do docente são completamente inócuos, e longe estaria Sautedé de imaginar que algo de tão fútil lhe poderia vir a trazer tamanhos dissabores. Não amem o mundo nem o que nele há. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Pois tudo o que há no mundo – a cobiça da carne, a cobiça dos olhos e a ostentação dos bens – não provém do Pai, mas do mundo. 1João 2:15,16 Não bastou à USJ afastar Eric Sautedé, pois também a sua esposa Emily perdeu o cargo de deado da faculdade de ciência política, cargo esse para o qual trabalhou bastante, e que de um dia para o outro viu fugir-lhe das mãos, numa decisão que só pode mesmo ser entendida como intimidatória. A face de todo este agravo foi o director da Universidade, que é também um sacerdote católico assaz conhecido da nossa comunidade, e para quem a vida não ficou nada fácil depois disso. Muito se conjecturou sobre as razões de um acto que nos remete a um período da História da própria Igreja de que esta pouco se orgulha – ou não se deveria orgulhar de todo. Falou-se do interesse maior da USJ, nomeadamente na eventual concessão de um terreno para o novo campus, o que depois de muita hesitação acabou mesmo por acontecer. O custo material dessa empreitada, que desconheço, pode ser quantificado, mas o mesmo não se pode dizer do seu custo imaterial, quer moral, quer espiritual. Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus'”. Mateus 4:4 Sautedé deixou-nos no mês passado, indo com a família leccionar aqui ao lado em Hong Kong. Depois de verem fechar-lhe as portas no território, parte para onde muito provavelmente será mais um dos “delitosos de opinião”, muitos dos quais vêem a sua entrada barrada neste lado devido às suas posições e ideologia políticas. Não se pode dizer portanto que a RAE vizinha ficou a ganhar, mas a nossa certamente que nada beneficiou com tudo isto, e mesmo o próprio Eric Sautedé aceitou o seu destino com uma candura que provavelmente muitos de nós não teria; investiu em habitação própria neste território para onde veio quando o seu filho mais velho tinha um ano, e onde nasceu o seu segundo, e ambos vão agora precisar de fazer novos amigos, como quem começa tudo de novo, e como se viesse a fugir de uma guerra, ou de um grande mal. Será Macau isso mesmo, um “mal” para quem ousa revelar um espírito crítico? E mais importante que isso, é assim que queremos atrair os quadros qualificados que tanta falta nos fazem em tantos quadrantes? Perguntas que ficam no ar, e que acabam por adquirir um mero estatuto de retórica.