VozesVivam os Piratas! Fernando Eloy - 31 Ago 2016 [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]qui há dias falava com alguém sobre piratas e vi-me quase ostracizado por dizer que os admiro e até talvez, nas condições certas, me atraia muito mais ser pirata do que um marinheiro qualquer de um barco qualquer o que, claro, levou ao choque total do meu interlocutor. Mas é assim mesmo. Sempre gostei de piratas. Desde pequeno que me lembro do prazer em ler aventuras de piratas e de corsários. E sempre preferi os piratas por serem mais honestos do que os corsários, mercenários de potencias que não pretendiam ver o seu pendão envolvido em acções menos próprias, e de preencher a imaginação com aquelas enseadas escondidas aqui e ali nas Caraíbas. Contrariamente ao que a maioria pensa, ou àquilo que nos ensinam, nem todos os piratas eram máquinas sanguinárias que cortavam cabeças a seu bel-prazer violavam donzelas ou rebentavam com barcos e portos porque sim. Esses eram, e são, os bandidos. Os piratas dos tempos antigos tinham códigos de conduta extremamente bem delineados e uma organização muito próxima do que talvez possamos chamar de verdadeira democracia. A ideia dos capitães piratas ditadores é absolutamente enganosa pois o capitão era escolhido pela tripulação e os alvos a atingir, as rotas a percorrer, eram objecto de discussão colectiva. Se o capitão se armasse em ditador, a famosa prancha ou o abandono num qualquer lugar inóspito era o seu destino mais provável. Para além disso, os piratas pilhavam mas distribuíam. Entre eles, naturalmente, mas de forma igualitária, e entre as famílias ou populações que suportavam, um caso muito frequente, por exemplo, na pirataria nesta zona do mundo. Grande parte dos piratas dos mares do Sul da China eram os únicos meios de sustento de muitas povoações miseráveis do litoral, oprimidas que eram por mandarins gananciosos, esses sim, os verdadeiros selvagens. Ainda hoje, o caso dos famosos piratas da Somália é um exemplo disso. Quantas vítimas há a registar? Muito poucas. Em contrapartida, as zonas controladas por eles na Somália têm condições de vida para a população, com escolas, apoios de saúde, como em mais nenhum lugar do país, Ou seja, tudo aquilo que o Estado corrupto não consegue proporcionar. Os piratas são agentes da distribuição de riqueza. Fossemos nós mais conscientes da necessidade que existe em distribuir a riqueza gerada no mundo por todos e os piratas não teriam razão de existir. Como dizia o professor de economia Carlo Maria Cipolla no seu famoso “Tratado Sobre a Estupidez Humana”, é muito mais perigoso um estúpido do que um ladrão pois enquanto este transfere riqueza, o estúpido cria prejuízos para ele e para os outros, ou seja, ficamos todos mais pobres. E dúvidas existem sobre sermos governados, em grande parte do mundo, por estúpidos? Para além deste poderoso efeito de regulação social, os piratas tinham, e têm, outra grande atracção: chama-se liberdade. Nos tempos dos piratas das Caraíbas, como se pode ler no “Grande Livro dos Piratas” assinado por um misterioso John Malam, que muitos pensam ter mesmo sido pirata para tanto saber e em tanto pormenor, quiçá mesmo um ex-comandante, a prática corrente quando aprisionavam outros barcos era a de dar livre escolha à tripulação derrotada. Ou seja, se pretendiam continuar na vida deles, agarrados a um comerciante avarento ou a uma qualquer marinha ou juntarem-se aos piratas. Diz Malam que era incrível o numero dos que optavam pela ultima solução desejosos que estavam de se libertarem das grilhetas do “establishement”, ávidos pela aventura, da liberdade e, naturalmente, da reforma dourada num qualquer paraíso impossível de outra forma. Madagáscar, diz-se, era um desses locais. Porque apesar de alguns piratas terem sido presos e condenados muitos reformaram-se na altura certa e viveram uma vida tranquila. Os piratas são, portanto, a resposta natural à cupidez, à avareza que faz uns muito ricos e outros muito pobres. Veja-se nos dias de hoje. Quantos de nós, dos que gostam de futebol, vêem os seus jogos preferidos nos canais piratas? Muitos, eu sei. Porquê? Porque os canais dedicados são caros e nem todos os podem aguentar. São caros porquê? Porque os jogadores e empresários ganham fortunas cada vez mais colossais ao ponto de transferências de 40 milhões de euros já fazerem parte do quotidiano e um jogador que custe um dois milhões de euros ser considerado uma bagatela, pois não convém pensar no que se poderia fazer em apoio social com essa “mixaria” de dinheiro. Por isso, as televisões pagam fortunas também, coitadas. Mas se os jogadores ganhassem menos e as transferências não custassem o que custam o futebol acabava? A resposta parece-me óbvia. Outro dos exemplo mais flagrantes é o do cinema. Um filme recente no iTunes custa cento e tal patacas. Não podia custar metade? Os actores, que ainda por cima não têm uma carreira curta como os atletas, precisam mesmo de ganhar os milhões que ganham? Não podiam ganhar um pouquinho menos ou, se calhar, até o mesmo, pois se os filmes fossem mais baratos mais os comprariam. Mas não é assim que funcionam o mundo. A regra é acumular tudo do mesmo lado. Os piratas são fruto da cupidez e, permito-me dizer, um bem social. Veja-se o caso da Uber. Chamam-lhes piratas porque a lei não está de acordo com eles. Mas em vez de aperfeiçoar a lei escorraça-se o serviço sem apresentar uma solução melhor. Viva os piratas! Farto estou de gente engravatada, desses que se dizem bonzinhos e cumpridores das normas sociais pela frente, dos que aparecem nas revistas e nos jornais como gente dita íntegra e para lá que qualquer suspeita e, por trás, são reles bandidos que roubam ideias, que governam mal e subtraem dinheiro aos desgraçados como se tem visto nos escândalos financeiros recentes. Os piratas não escondem o que são. Quando a “Jolly Roger” se ergue já se sabe quem ali está e ao que vem. Os engravatados “impolutos” são muito mais perigosos porque nem sequer pendão hasteiam. Vêm de surra, a sorrirem e de mão estendida. MÚSICA DA SEMANA (David Bowie, 1967) “Rich men’s children running past Their fathers dressed in hose Golden hair and mud of many acres on their shoes Gazing eyes and running wild Past the stocks and over stiles Kiss the window merry child But come and buy my toys”