VozesMorde aqui a ver se eu deixo Isabel Castro - 19 Ago 201621 Ago 2016 [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]coisa acontece assim: eu, residente de Macau, perfeita conhecedora dos níveis de tolerância da polícia local, entro ali num prédio abandonado e decido pendurar uma faixa com um insulto a uma figura pública da terra. Como sei que há vários sentidos que não abundam na cidade – incluindo o de humor, se de uma piada se tratasse –, tenho a certeza de que responderei, pelo menos, por um crime. Ou por dois ou três. A polícia não brinca em serviço e alimenta as gordas dos jornais, pelo que amanhã estarei, sem dúvida alguma, na capa deste matutino. E nas dos outros, ora pois, que as notícias não abundam. Com sorte, entro no próximo relatório sobre a falta de liberdade de expressão em Macau. Mas eu, que até dei a entender ter estado na origem do acontecimento, não assumo o que fiz, porque há o segredo de justiça e coisa e tal. E, já agora, quem me conhece como jornalista que escreva a notícia sem fazer referência à profissão pela qual meia dúzia de gatos-pingados me identifica: chamem-me outra coisa qualquer que eu às vezes sou isto, outras vezes sou aquilo. O acontecimento Scott Chiang versus Alexis Tam, com o Hotel Estoril como pano de fundo, tem entrada directa no anedotário político local. Por várias razões, a começar pelo formato e a acabar na intenção. O rapaz da Associação Novo Macau – que, neste episódio, não quer ser conotado com a Novo Macau, embora a Novo Macau aplauda o sucedido – não se ensaia nas palavras e nos actos, diz não ter medo de nada, nem de ninguém, mas não assume a autoria da intervenção activista da semana. No plano das intenções, Scott Chiang está apreensivo com o património da terra, preocupação que só lhe fica bem e que é partilhada pelas gentes que amam a cidade. Recusa ser protagonista de manobras eleitoralistas, fez a coisa que afinal-não-diz-que-fez por amor à camisola, neste caso o edifício do antigo Hotel Estoril, acusa o secretário de falta de debate público, de homicídio dos bens valiosos da urbe. Como membro de uma associação que, independentemente de gostos e preferências, até há bem pouco tempo era levada a sério por pessoas com diferentes posturas na vida, o activista não debate, não organiza mesas redondas, não chama dois ou três especialistas para uma troca de ideias, não sugere uma alternativa. O activista age. Age mais ou menos – não sabemos se foi ele que agiu, que o protagonista alega o silêncio que a justiça impõe. Em suma: andam todos a trabalhar para os jornais. Os novos da Novo Macau e a polícia de enraizados costumes. A malta da comunicação social agradece, é assunto para uns dias valentes e daqui a uns tempos volta a ser notícia, quando se for ver o que aconteceu ao processo. Além de estarem a trabalhar para os jornais, uns e outros contribuem para que o debate não aconteça, porque nestas linhas que escrevo o património fica de fora, se ainda houvesse alguma coisa para discutir em torno do Estoril. Assunto mais debatido – para a esquerda e para a direita, por dentro e por fora – não há. Certo é que estes episódios de provinciana política vêm aumentar a estranha fogueira em que se quer colocar Alexis Tam – e é aqui que Scott Chiang e os parceiros poderão estar a desempenhar um papel mais ou menos consciente e mais ou menos perigoso. Percebeu-se desde o início que o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura não ia ter a vida facilitada. A gestão pública de um ou outro processo não ajudou à missa: o caso Estoril não foi particularmente bem dirigido e esta condução atribulada tem resultados à vista. Goste-se ou não do estilo, simpatize-se ou não com Alexis Tam: num exercício de distanciamento, é visível, a olho nu, que existe interesse (ou vários interesses) em colocar pedras num caminho já cheio de buracos, por via da inacção do passado e da sobrecarga de tarefas do presente. Goste-se ou não do secretário, basta ler os títulos dos jornais para se perceber que não há movimento respiratório que Alexis Tam faça que não seja alvo de críticas. Se foi é porque não devia ter ido, se consultou não devia ter ouvido, se não ouviu devia ter falado. Se vai fazer é porque vai gastar dinheiro, se deixar tudo como está é porque não se interessa, não faz, é igual aos outros. Se agrada a uns é porque é mais isto, se satisfaz outros é porque é mais aquilo. Em suma: não há pachorra. Não haveria pachorra se tudo isto não fosse sério, talvez mais sério do que aparenta ser. Pensar que Scott Chiang é um menino nas artes políticas não é um erro total, mas pode corresponder a uma análise pouco aprofundada. Atribuir às eleições do próximo ano a culpa pelos dedos em riste é uma explicação plausível, mas só em parte. Em Macau, há sempre mais qualquer coisa, qualquer coisa mais opaca do que aquilo que nos é mostrado. Andamos todos entretidos com o burburinho activista e, às tantas, o que importa passa serenamente ao lado, entre os pingos da chuva que abunda e é forte. Um dia destes ainda vamos todos perceber o que efectivamente se está a passar, que interesses maiores se erguem por aí. Ou talvez não, talvez não nos contem e a gente nem dê pela ausência de explicação, entusiasmados que estamos, de pipoca na mão, a achar que é com episódios emocionantes como o do Hotel Estoril que o mundo pula e avança.