Sopra-lhe com força

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á uma coisa estranha em Macau: nunca nada é importante, sendo tudo de extrema importância. Passo a explicar. O acontecimento da semana? Um tufão. Ou, para ser rigorosa, a polémica em torno da classificação de um tufão.
Uma tempestade tropical é uma coisa séria, como todos sabemos. Aqui à volta, bem perto de nós, há gente a morrer por causa da passagem de tufões, há gente a ficar sem terras e colheitas e o ganha-pão por causa de tufões, há aldeias e vilas e cidades que se destroem em minutos para serem jamais reconstruídas.
Por cá, os tufões são coisas que sopram devagar, mesmo quando são fortes. Nos quase 15 anos que levo de Macau, nunca vi nada de muito grave acontecer. Árvores e tabuletas no chão, uns carros maltratados, lixo pelo ar e, em duas ou três tempestades, pessoas que ficaram sem o negócio por causa das medidas que não se tomaram, anos a fio, para evitar inundações no Porto Interior.
Ainda assim. Um tufão é uma coisa séria, que exige cuidados mais do que mínimos. Por ser uma coisa séria, não se pode transformar numa anedota. Pode, se formos nós, sociedade civil, a puxarmos do sentido de humor e a fazermos umas piadas sobre o que se passou esta semana; mas não pode ser transformado em anedota por quem tem responsabilidades e a obrigação de garantir o interesse público.
Por questões científicas que não interessam ao Menino Jesus, os Serviços Meteorológicos e Geofísicos de Macau decidiram não avançar com o sinal 8 na noite de segunda para terça-feira. A possibilidade chegou a ser colocada e a hipótese foi anunciada, foi sendo protelada, e depois arquivada. A decisão de manutenção do sinal 3 foi tomada durante a noite, soprava forte o vento nas minhas janelas. Um vento que afinal não tinha força suficiente para que o sinal 8 fosse içado. Mas a avaliação da força da intensidade dos ventos é coisa que me passa ao lado – preocupo-me com outras coisas mais relevantes e sei que estou longe de ser a única.
A confusão em torno da qualificação do Nida deve ser analisada de vários ângulos, a começar pela questão da segurança – afinal, a mais importante. Mesmo não sendo tufão 8, recomenda-se à população em geral e à mais frágil em particular que se mantenha resguardada, não vá o diabo tecê-las. O diabo teceu-as do seguinte modo, de acordo com as contas dos Bombeiros: entre outras ocorrências, 26 árvores foram ao chão e caíram 32 objectos.
Como Macau é terra de jogos de fortuna e azar, não houve galhos nem tabuletas a fazerem feridos, apesar das pessoas que andaram nas ruas empurradas pelo inconsistente vento. É que, apesar das recomendações oficiais, sucede que, sem sinal 8, o patronato – ou a grande maioria – não manda os trabalhadores para casa, para que possam tomar um banho quente e vestir roupa seca. Está chuva e vento e é difícil a malta mexer-se, mas há que ter paciência e uns chinelos de plástico na mala. É a vida. Uma vida na qual não se pensa quando o único critério para a tomada de decisões é a força dos ventos.
Depois, temos a questão da organização de toda uma sociedade que tem relações de interdependência: com uma decisão a ser adiada pela noite dentro, mais não resta a quem cá vive do que ficar acordado – ou ir acordando com regularidade – para perceber o que fazer no dia seguinte. Com Hong Kong em sinal 8 há várias horas, com Zhuhai em alerta amarelo e Shenzhen em alerta vermelho, não havia razões para acreditar que os Serviços Meteorológicos e Geofísicos de Macau iam mandar o povo todo trabalhar à chuva e ao vento na terça-feira, com uma bela tempestade na rua. E aqui não se trata das mais ou menos horas que a malta pode ficar a dormir numa manhã por norma de trabalho; trata-se, isso sim, de saber onde e como se deixam os filhos, se há transportes para ir trabalhar, a que horas se vai trabalhar, se o supermercado ou a farmácia vão estar abertos, se a reunião marcada para de manhã no escritório vai mesmo acontecer ou se é preciso marcar nova data.
Numa perspectiva económica – a área do saber que, mais até do que a ciência, é a favorita do léxico oficial local –, as pessoas estarem à espera de um tufão forte e sair-lhes na sorte um que não deitou ao chão sequer 30 árvores não é uma coisa boa. Pode ser um grande azar. A encomenda que não se entregou de acordo com o que estava acordado, porque estava a chover, mas não estava tufão 8. A reunião que se adiou e não se devia ter adiado, mas às 5 da manhã era tarde para andar a fazer contactos e marcar novas agendas.
Depois do caricato episódio Nida – que me podia levar a escrever também sobre os preços praticados por táxis, acerca das motas aos esses, sobre o mecanismo de protecção civil que só funciona quando o vento sopra com mais força ou ainda sobre o túnel que só abre se houver razões científicas para tal –, vieram as críticas dos mais diversos quadrantes, as justificações científicas e, mais recentemente, o avisado pedido de desculpas do secretário para os Transportes e Obras Públicas.
O Nida, sendo um episódio que, para a semana, se tornou apenas caricato, dá que pensar. No modo como tudo isto está organizado, na forma como se encara a vida dos outros. Que o Nida não se repita. E os tufões sejam inequívocos, para facilitar a vida à malta que decide a que horas e em que condições térmicas vamos nós trabalhar. Para a próxima, que sopre mais forte. Ou mais devagarinho, muito devagarinho, que dispenso mau tempo na cidade.

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