Já não há estórias de encantar

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s três Feiras do Livro anuais que se realizam em Macau não têm um décimo da dimensão da Feira do Livro de Hong Kong. Há quem ache que hoje em dia as Feiras do Livro se limitam a ser locais de grande aparato para venda de livros em série, mas esse é apenas um dos aspectos da questão. As Feiras do Livro de Macau destinam-se apenas a vender livros e não possuem todo o envolvimento comercial que caracteriza a Feira de Hong Kong, na qual os visitantes podem, inclusivamente, actualizar-se sobre os mais recentes acontecimentos sociais. Não se vai à Feira do Livro de Hong Kong só para comprar livros.
Este ano, a Feira de Hong Kong não apresentou a selecção dos “autores do ano” porque, antes do mais, os “autores do ano” nomeados se recusaram a comparecer, e depois porque não havia autores nomeados, à altura. Estas duas razões não parecem ter relação entre si, mas na verdade existe uma relação causa-efeito entre ambas. Numa sociedade orientada para o negócio, como a de Hong Kong, é muito difícil fazer carreira como escritor e por isso existem poucos escritores famosos e intelectualmente competentes. Por outro lado, como os editores e livreiros procuram sobretudo obter lucro, expõem nas montras os livros mais recentes durante três meses consecutivos. É evidente que desta forma os livros são promovidos e vendem mais. Mas os jovens escritores desconhecidos têm muita dificuldade em divulgar o seu trabalho. Com a fraca promoção que recebem é complicado virem algum dia a fazer carreira. No pólo oposto temos os escritores sensacionalistas que dominam os meandros da promoção e publicidade, e são estes que acabam por ter sucesso. Com dados tão viciados será que ainda é possível encontrar verdadeiros escritores? Quando os editores e livreiros olham para a cultura com um negócio, é quase impossível ver surgir novos escritores e menos ainda escritores com um pensamento independente.

Salientemos de novo que, este ano não houve nomeações para “autores do ano” na Feira do Livro de Hong Kong, embora o tema escolhido tivesse sido a literatura “Wuxia”, romances de artes marciais, um género bastante popular entre os leitores nostálgicos de aventuras dos bons velhos tempos. E isto porque os laços genuínos de amizade e lealdade que se encontram nos romances “wuxia” já não são reconhecíveis pela sociedade actual. A feira deste ano, mais comercial do que nunca, também evidenciou algumas dissensões sociais, que se manifestaram através de diferentes chavões formados por uma combinação de um número reduzido de palavras chinesas (caracteres).
Cada palavra chinesa (caractere) tem a sua própria pronunciação, que faz parte da sua estrutura, e que é construída pela forma e pronunciação. Quando duas ou mais palavras (caracteres) são associadas para formar uma nova expressão (chavão) mantendo-se a pronunciação de cada uma das palavras simples (caractere), estamos perante uma invenção que não faz muito sentido em termos práticos. Estes chavões apenas revelam o actual estado das coisas em Hong Kong. Os livros e artigos repletos de chavões, proporcionam ao leitor uma emoção primária. Aqui vão alguns exemplos: Paz-Racional-Não-violência-Não-profanação, esquerdista, confrontações violentas, etc. O uso de chavões na escrita, juntamente com a venda de livros sobre a Revolução dos Guarda-Chuva, confrontações violentas e desobediência civil, demonstram os problemas com que se debate Hong Kong actualmente. Estes problemas não terminaram quando o Movimento Occupy Central foi neutralizado. Antes pelo contrário, foi-se afirmando uma gradual intensificação das contradições sociais. As eleições para o Conselho Legislativo de Hong Kong, agendadas para Setembro próximo, vão ser palco de confrontações políticas entre pessoas com diferentes pontos de vista. Existe uma série de problemas que só poderão ser resolvidos depois das eleições para a chefia do Executivo, a ter lugar em 2017.
A partir do momento em que as feiras do livro se comercializam, os estudantes passam a ter ao seu dispor uma grande quantidade de materiais de apoio escolar. Os jovens de Hong Kong recebem uma formação orientada para as “notas”, por isso pergunto-me qual vai ser o seu posicionamento em relação às questões sociais. Houve pessoas que se insurgiram contra os jovens que atiraram tijolos durante o levantamento nas ruas de Mongkok, no segundo dia do Ano Novo Chinês, mas poucos se interrogam sobre os motivos que os levaram ao motim. Embora não tenha encontrado respostas a estas questões durante a minha visita à Feira do Livro de Hong Kong, ganhei apesar de tudo mais algumas perspectivas. Ao contrário, as Feiras do Livro de Macau são muito monótonas, parece que não servem para nada. Serão estas feiras uma síntese da sociedade macaense?

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