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Parte 1

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Manual de Instruções Para Desaparecer” (Abysmo, 2015) é o primeiro livro do poeta José Anjos. Dividido em partes, quatro, a primeira delas chama-se “I – Dos Lírios”. E o seu primeiro poema é “Instruções de tempo, modo e lugar para encontrar um lírio antes do jantar” O título do poema é ele mesmo um poema. Não ver aqui uma gramática é impossível, pois “tempo, modo e lugar” não deixam que isso aconteça. Este tempo, modo e lugar acaba por tomar, privilegiadamente, conta da atenção. Como se nos avisasse: antes de mais isto aqui é feito com uma língua, e esta língua tem uma gramática, e uma gramática tem regras, instruções, que inclusivamente nos podem levar a “encontrar um lírio antes do jantar”. Sem gramática, nem um nada encontramos.
Para a economia deste texto será necessário pôr aqui o primeiro poema do livro, por inteiro:
Hora:
oito (menos 5) = vinte e três cabelos brancos antes do rugido circular

Instruções:
com um traço de giz na lapela, barba e olhos estrelados apenas visíveis muito
perto do lado de fora

Sítio:
duas asas à esquerda do portão em assobio leve

Código:
com uma mão no bolso, a outra transversal à linha mais doce da terra

Outras recomendações:
Ter atenção à rotação cardiovascular entre cada hemisfério e esperar

O poema surge-nos em forma de dicas, de notas que se escrevem para não esquecermos algo. Começando pelo fim, aquilo que não devemos esquecer é precisamente a última palavra do poema, que é colocada um pouco afastada das outras, no último verso, de modo a fazer salientar ainda mais aquilo que é preciso realmente não esquecer: esperar. Na realidade aquilo que é importante, e nos surge em forma de “outras recomendações” – para além das mais importantes, depreende-se – é ter atenção ao mundo e esperar. Mas para além da programática evidente do poema, como todo o livro, há versos absolutos de belo: “duas asas à esquerda do portão em assobio leve”, “com uma mão no bolso, outra transversal à linha mais doce da terra” e os maravilhosos “com um traço de giz na lapela, barba e olhos estrelados apenas visíveis muito / perto do lado de fora”. Passado o teste iniciático, caímos num poema cujo título mostra-nos o fascínio, uma vez mais, que a gramática exerce sobre José Anjos. “A Este Inverno”, chama-se o poema. Há uma estranheza neste título por duas razões: 1) Inverno passa a ser sentido como alguém; 2) sentimos também o título como um brinde que se faz, com copos na mão. Depois, é do Inverno que se fala. E o poema, tal como sentimos geralmente o Inverno no hemisfério norte, é triste: “Há uma tristeza que morre pelos cantos / deixa-se levar pelo vento / como uma criança num dia de escola / sem dar muita importância a si própria // mas um quadro não diz tudo” E nem o último verso, afundando-se em dúvida, salva o poema da tristeza em que o Inverno nos deixa ou parece nos deixar. Mas o último verso não tem somente a eficácia da dúvida, introduz também um “quadro”, polissémico, que nos faz ver o poema como uma pintura, ao mesmo tempo que nos remete para a infância e nos faz andar para trás no poema, como se nos dissesse, ou quisesse que víssemos, que o mais importante de tudo é “(…) uma criança na escola / sem dar muita importância a si própria”. A chave para ultrapassar tudo, até um Inverno, é isso que este verso nos faz ver repetidamente, devido ao toque mágico daquele substantivo “quadro” no último verso do poema. Nada é deixado ao acaso nesta poesia, nestes poemas. Para além da magistral e desconcertante lírica, no primeiro poema, entende-se também agora o mecanismo profundo que sustem a máquina. Melhor: entendemos que há um mecanismo profundo que sustém esta máquina. Veja-se o caso do primeiro terceto da segunda estrofe de “Às vezes morde”: “É sempre tramado o rato [Mickey] / do passado, ainda agora é hoje / e amanhã já está fechado”. Para além da eufonia evidente entre o “passado” do início do segundo verso e o “fechado” no final do terceiro, atente-se no jogo retórico dos segundo e terceiro versos, que acabam por iluminar metafisicamente o poema: “do passado, ainda agora é hoje / e amanhã já está fechado”. Eivados de enálage, figura retórica que distorce a gramática (“ainda agora é hoje”, “e amanhã já está fechado”), os versos obrigam-nos a ver não só a gramática – por comparação, pela estranheza que o uso gramatical causa – mas também a relação que usualmente temos com o tempo, com as categorias temporais, subdivididas em passado, presente e futuro. Mas voltemos um verso atrás, de modo a termos mais balanço para o que se pretende mostrar: “É sempre tramado o rato [Mickey] / do passado”. Este “é sempre” arrasta o passado. O passado estende-se mesmo para além do futuro, naquele “e amanhã já está fechado”. O passado, que é sempre tramado, abalroa o presente (“ainda agora é hoje”) e boicota completamente o futuro, no “e amanhã já está fechado”. Perante a força do passado, todo o futuro se fecha e o todo o presente é sempre um ainda, faz-se sentir como sempre ainda. “Às vezes morde” é um poema belo, onde o que ficou para trás, aqui “personificado” pelo rato Mickey da infância, está sempre presente. Mas não é a infância que está presente no poema, nem tão pouco o rato Mickey, mas a queda deste, a prisão deste, a perda irreversível da infância. Assim, o passado não é a infância, mas a perda da mesma. Aquilo que é para sempre – é sempre tramado o rato Mickey – é um passado que nos roubam, que ficará para sempre connosco na categoria de objecto perdido, sempre em frente a nós, sempre a ser lembrado. Mais: o passado apresenta-se neste poema como a perda da ingenuidade, como a descoberta de que não há pai natal, só rato Mickey. Repare-se na quarta estrofe do poema: “Mas digo-te a verdade: / mesmo derrotado / eu sabia (com o cérebro semi-encalhado) / que tu és um delírio doce / e que o sacana do Mickey / um culpado” E, ainda que os três versos finais do poema (escritos entre parêntesis) pareçam apontar alguma possibilidade de redenção, isto é, alguma possibilidade de nos libertarmos do passado, de conseguirmos fazer o tempo correr como nos ensinaram que ele corre, de trás para a frente sem parar, o uso dos parêntesis, por um lado, e o “apesar de velhas” não nos dá conforto. Mas veja-se então os oito últimos versos: “Só para te ver sorrir e depois / no fim / poder perder / e forjar asas esdrúxulas / no dorso tenro de Morfeu / (e que jeito deram, apesar de velhas / para voar atrás do rato Mickey e / apanhá-lo pelas orelhas)” Duas situações importantes de salientar: 1) “no fim / poder perder”; 2) “e forjar asas esdrúxulas / no dorso tenro de Morfeu”. Há uma possibilidade de fuga, ou neste caso, pois o poema é todo ele uma inversão do ponto de vista como o passado é visto por nós, há uma possibilidade, ainda que remota, de apanhar o passado: forjar asas esdrúxulas no dorso tenro de Morfeu. Morfeu aparece-nos aqui ao lado de Mickey, embora sem o poder deste, porque é aquele a quem vamos pedir ajuda contra a prisão da infância, contra a omnipresença do passado. Mickey (poderia ser outro herói pop e de banda desenhada) representa o passado, assim como Morfeu o presente, pois para nós Mickey está antes de Morfeu. E este último, representando o presente e por isso de dorso tenro, é a nossa única possibilidade de podermos conseguir libertar-nos de um omnipresente passado, culpado de quase tudo. Há aqui, sem dúvida alguma vibração de Freud, mas também um apontamento ontológico fundamental, ao enunciar o passado como um mar que nos envolve para sempre e como Morfeu (que aqui representa não só o deus grego dos sonhos, mas também todos os novos heróis que vamos conquistando depois de exilados da infância) será sempre menos poderoso que o rato Mickey, embora seja no dorso tenro dele que temos de forjar esdrúxulas asas. É um poema brilhante, que nos mostra um tema muito comum – a infância perdida – de um modo absolutamente original e ontológico, que nos faz ver coisas que não tínhamos ainda visto, ou pelo menos não as tínhamos visto por este ângulo. Mas veja-se ainda, como já anunciado páginas atrás, aquando da inusitada dedicatória, a importância da atenção e do ver para José Anjos, com a terceira estrofe do poema: “Bem o quis ajudar, [ao rato Mickey] / mas nessa noite / eu já era advogado / era oficial bisonho / de um navio / naufragado no coral do engano” Estes versos são também um dos poucos onde é possível encontrar alguma referência biográfica do poeta – eu já era advogado. Claro fica aqui quem não pode ajudar o rato Mickey, isto é, a transformação do passado, de modo a libertarmo-nos do peso esmagador do mesmo, do para sempre do passado. Mas o que me traz a esta citação é, antes de mais, o adjectivo “bisonho”. Ora, se aceitarmos que o poeta usou o termo na etimologia enraizada no italiano (bisogno, necessidade), entendemos que ele como advogado tornara-se um oficial da arte de estar sempre em necessidade de algo, oficial de estar sempre a pedir alguma coisa, pois só por ele mesmo não lhe seria possível provê-las. No fundo, ele tornara-se um oficial de incapaz, oficial de não saber prover aquilo de que necessita. E esta incapacidade apresenta-se, uma vez mais, como uma inversão do ponto de vista usual, já que aquele a que nos habituamos a acusar de bisonho é o poeta e não o advogado. Mas o advogado não tem poder para transformar o passado, só o poeta, só aquele que forja asas esdrúxulas. A guerra aqui não é a do dia a dia, a do sucesso ou fracasso usuais, mas a de resgate do passado, do rato Mickey, preso algures entre a saída da infância e ser-se advogado. Resgatar o passado é ao mesmo tempo libertar-nos dele, é finalmente fazer com que os dias se tornem um enorme passado a crescer, e não um enorme passado onde o futuro está fechado e o presente é ainda hoje. Assim, bisonho, apresenta-se também como aquele que não vê, aquele que não presta atenção às coisas, isto é, aquele que não vê e que não presta atenção ao que realmente importa. “Ás vezes morde” é um poema iniciático e programático, um poema que nos mostra onde estamos e as possibilidades que temos.
No poema seguinte, Ícaro TV, encontramos logo no título o que já antes tínhamos encontrado no poema anterior, a convivência entre os mitos clássicos e a cultura pop. Mas, e como vimos, anteriormente, esta convivência não é pacífica nem deixa de ser; não é sequer uma convivência posta em comparação, é uma convivência que tão somente acontece, como pessoas completamente diferentes num mesmo bar. Como se continuasse o poema anterior, de alguma forma, Anjos volta a invocar as asas, na sua negativa – já sem asas – como algo que perdeu no tempo, na vida, deixando o seu contentamento um pobre de duas pernas. Resta-nos o contentamento de que há saúde e estamos inteiros. A vida resume-se, e depois do passado e enquanto não se o transforma, a um “Dormir viver acordar / e morrer”. Não há capacidade, forças, para acordar ao lado de alguém a meio da noite ou de manhã e ainda ter asas. Estamos reduzidos a duas pernas, que não é mau, e com isso não se inventa amor, ilusão, não se inventa um sentido para a vida para além do andar dali p’ra fora, que é visto e sentido não só como um bem, mas também como um contentamento. O contentamento que nos resta – à falta de asas para voar uma relação com outro – é essa resignação de duas pernas.
Em “Seremos apenas dois” a liguagem faz uma festa. O poema é denso, grande – duas páginas e meia, um dos maiores – mas de um lirismo arrepiante. Em alguns momentos lembramos Pessanha, como nestes dois versos: “Mãos que afagam o vazio / num ritmo ágil e delicado” ou nesta estrofe de quatro versos: “E onde antes / nasceram asas crescem agora / pelo fundo das brasas / cinco vértebras de dor”. Ou ainda na beleza, densidade e música dos últimos versos da penúltima estrofe: “Como podem viver estes imortais, assim, / ao contrário da terra à porta do mundo? / É simples: vivem um dia de cada lado”.
Em “Asas de Cesariny”, poema pequeno, dividido em duas partes (I e II), o autor além de uma evidente homenagem ao poeta referido no título, pretende também sublinhar a sua familiaridade ao surrealismo. Sem dúvida, identificamos essa herança em alguns versos de José Anjos, mas é no que tem de herança de Camilo Pessanha, e no modo como também distorce essa herança, que encontramos o seu melhor tom, o seu tom efectivamente superior, único.
(Continua na próxima semana)

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