“Macau é único no território chinês”, Tang Kaijian, investigador e autor na área da “Macaologia”

Tang Kaijian é professor da Universidade de Macau e dedica-se sobretudo à investigação da área da “Macaologia”. O também autor lançou recentemente uma compilação exaustiva da influência do Ocidente em Macau entre os séc. VI e XIX. Considerado já pioneiro na investigação histórica da RAEM em língua chinesa, Tang Kaijian alerta para a necessidade de preservar a multiculturalidade que caracteriza a região e já está a ajudar nesse sentido, investindo o que pode em tradução de documentos

Como é que nasceu o interesse pelo estudo de outras etnias?
Estudei em Lanzhou que se situa no centro noroeste da China e que pelas suas características geográficas era um lugar propício à investigação nessa área.

Como surgiu a ideia de começar a estudar Macau e as suas influências?
Surgiu essencialmente devido a duas razões: por um lado, sou natural de Hunan, que fica situado no Sul da China. Quando fui para a Universidade de Jinan notei que o conhecimento entre o Norte e o Sul da China está completamente separado e que [os dois lados] não comunicam. Percebi também, visto que estudava as etnias no Noroeste, que em Jinan era difícil aceder a informações e materiais rigorosos acerca das etnias no norte. Por outro lado, naquela altura estava em discussão aberta a questão da transferência de Macau e Hong Kong para a China. A Universidade de Jinan criou uma equipa de professores para que estudassem estas questões. Integrei a equipa de Macau e comecei os meus estudos acerca do território.

Veio para Macau para aprofundar esse estudo?
Na Universidade de Jinan, após 20 anos de estudo na área da “Macaologia” formei uma equipa que honrosamente ficou chamada de equipa Tang por ser liderada por mim. Na altura era considerada a equipa mais forte no estudo da “Macaologia”. Acabei por formar muitos alunos também nesta área. As barreiras eram muitas, essencialmente linguísticas, na medida em que as fontes eram em Português, Espanhol ou mesmo Francês. Numa viagem de trabalho à Europa encontrei-me com o director da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Macau, que entretanto tinha criado na instituição o departamento de História. Daí surgiu o convite para vir para Macau. Seria mais fácil estudar a RAEM estando a viver e investigar aqui. Tang kaijian

Foi muito tempo a estudar Macau, numa investigação exaustiva. Quais os maiores desafios?
O maior desafio sem dúvida que foi a Língua Portuguesa. Se não houvesse o estudo dos documentos em Português para sustentar, o estudo de “Macaologia” nunca se poderia denominar de acabado. Quando percebi esta dificuldade em Macau passei a exigir que todos os meus alunos frequentassem também a disciplina de Português, sendo que já tinha a experiência de Jinan. São os meus alunos que acabam por traduzir muitos dos documentos de pesquisa. Com o financiamento dado pela UM pude trabalhar com alunos de mestrado e doutoramento de Português, o que representou uma grande mais valia. A história de Macau não é possível ser feita sem recorrer à Língua Portuguesa. Sem traduções dos documentos que na sua maioria estão em Português não é possível estudar Macau.

[quote_box_left]“Este processo de perda da herança multicultural é inevitável. Macau é um espaço pequeno com uma cada vez maior afluência e influência do interior da China”[/quote_box_left]

Do estudo que fez, quais as áreas que para si tiveram um maior interesse?
Penso que o mais importante é a influência que as culturas ocidentais tiveram na área da religião, nomeadamente no que respeita à católica. Apesar de também me dedicar ao estudo da lei ou da arquitectura, penso que a influencia religiosa social é a mais interessante.

Considera Macau um lugar único no mundo devido à miscelânea cultural?
Sem dúvida. Desde o séc. XVI ao séc. XIX que Macau foi o único espaço multicultural com contacto directo com a China. Só depois do séc. XIX é que cidades como Xangai e Hong Kong começaram a ter esta componente multicultural. Considero que Macau é efectivamente único no território chinês.

Com a integração de Macau na China, esta característica multicultural está condenada à morte?
Numa perspectiva objectiva, este processo de perda da herança multicultural é inevitável. Macau é um espaço pequeno com uma cada vez maior afluência e influência do interior da China. Isto faz com que a perda desta característica seja realmente inevitável. Quando falamos de “Macaologia” já podemos começar a estar falar em história. Por outro lado, considero que o Governo já investe na manutenção desta característica multicultural. Agora tudo depende do desempenho do próprio Governo. Se este não se empenhar, esta herança passará à história mais rapidamente.

O que é que o Governo pode efectivamente fazer?
Em primeiro lugar pode dedicar-se à protecção do Património Cultural presente e pode fazê-lo em vários sentidos. Por exemplo, a queda do tecto da Igreja de S. Agostinho não deveria ter acontecido. Deveria ser um dos edifícios a preservar, entre outros. Deveria ter sido feita uma avaliação prévia do estado desse edifício, bem como de todo o património histórico. Para além da protecção do património há ainda a questão dos livros. Há muitos livros antigos referentes ao séc. XVII e XVIII que também devem ser considerados património histórico e que deveriam ser organizados para que pudessem também ser objecto de estudo e de consulta, para mostrar ao mundo.

Na área da “Macaologia” o que tem previsto para o futuro?
O meu maior desejo é conseguir que todos os documentos que já existem em Macau possam ser traduzidos para Chinês, de modo a que possam ficar acessíveis a outros públicos, entre académicos e público em geral. Tenho investido todo o financiamento por parte da Universidade de Macau nesse sentido. Estou a traduzir o Arquivo de Macau e já estão realizadas dezenas de traduções de documentos. No total, tenho em mãos de cem a 200 livros. Este é também um trabalho que pretendo terminar para que posteriormente possa ser publicado e disponibilizado. Espero também que seja chamada a atenção do Governo para um maior investimento nisto mesmo, com mais financiamento e mais contratações, nomeadamente na área da tradução. Espero que, pelo menos até ao fim da minha vida, este trabalho esteja com 80% do volume concluído.

[quote_box_right]“Sem traduções dos documentos que na sua maioria estão em Português não é possível estudar Macau”[/quote_box_right]

Na China, a história da RAEM é então muito pouco conhecida…
Sim.

Acha que este trabalho permitirá dar início a essa divulgação?
Sim, sem dúvida. Penso que possibilita alargar esse conhecimento não só à China continental mas ao mundo também. No futuro haverá tradução para línguas estrangeiras, nomeadamente desta obra. Ainda não há previsões para a tradução para Português porque é uma língua muito difícil.

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