Festival de Carne | Defensores de animais acreditam em mudanças culturais

Controvérsia e choque. São algumas das características atribuídas ao Festival de Carne de Cão na China. Mas os tempos são outros. Cada vez mais chineses apoiam o fim deste massacre. Defensores locais falam em mudança dos tempos

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omeça hoje e dura 10 dias. Chama-se Festival de Carne de Cão, acontece na cidade de Yulin, na província de Guangxi, e mata 10 mil cães em cinco dias. Polémico é uma das suas características. Em 2014, depois de muitos protestos em edições anteriores, a organização chegou mesmo a antecipar o festival, em uma semana, para que os protestos não invadissem as ruas.
Nesse mesmo ano, um comunicado do Governo de Yulin explicava que não existia um festival organizado pelas autoridades. “Uma parte da população de Yulin tem o hábito do consumo de carne de cão e lichias no início do solstício de Verão, e por isso, tornou-se um costume popular nesta cidade”, pode ler-se no documento. O Governo frisava a sua independência na organização indicando que não existia um festival oficial. “Este tipo de actividades nunca foram realizadas pelo Governo ou por associações sociais. As nossas autoridades já lançaram projectos de regulação de carne, promovendo a matança civilizada (…) proibindo a matança pública (…) aumentando a fiscalização do roubo de cães (…)”, indicou na altura o Governo.
Depois de milhares de assinaturas recolhidas por diversas petições internas e além fronteiras o Governo indicou que tinha “em conta essas manifestações” e iria esforçar-se “na supervisão” do então chamado costume popular.

Conta a história

Na sua origem, o Festival de Carne de Cão está relacionado com duas expressões idiomáticas chinesas: “no solstício de Inverno nasce o peixe, no solstício de Verão nasce o cão”, e “comer cão em solstício do Verão, desvia o vento do oeste”, sendo que vento do oeste é sinónimo de azar e doença. Ao comer carne de cão no solstício de Verão, os chineses acreditavam que o seu corpo e sistema imunitário iriam ganhar defesas para qualquer doença possível.
Reza ainda a história que segundo a Medicina Tradicional Chinesa se aconselha a população a comer carne de cão naqueles que são considerados os últimos dias de Inverno, pois o Verão está à porta. É ainda defendido que quem come carne de cão – alimento quente – está a equilibrar o yin e o yang [conceitos de taoísmo].
Nos últimos anos o festival tem atraído a atenção do mundo, e, do outro lado da moeda, mais turistas e apreciadores para a cidade. A agência noticiosa Xinhua indica, num artigo, que a atenção atraída pelos defensores dos animais tornou-se uma oportunidade de negócio para os próprios comerciantes locais. É que as atenções aumentaram o número de visitantes e de vendas dos próprios cães ainda vivos, para os salvar. A agência escreve ainda que o mercado dos cães disparou.
Um dos casos mais conhecidos, em 2015, foi o de Yang Xiaoyun, uma mulher que para salvar 100 cães de serem comidos pagou mil dólares. Um jornal local indicava que a mulher, de 65 anos, levou os cães para sua casa, em Tianjin.

Novos ventos

Mas a mudança parece estar a acontecer. Um estudo pedido pela Sociedade de Prevenção aos Maus Tratos dos Animais (SPCA – sigla inglesa), de Pequim, indica que 64%, dos dois mil inquiridos, estão a favor do cancelamento do festival, sendo que 60% considera que este “costume popular” afecta “gravemente” a reputação internacional da China.
A empresa contratada pelo estudo, inquiriu dois mil cidadãos, entre os 16 e 50 anos, de mil cidades chinesas e 500 aldeias. As entrevistas foram feitas pela internet, por telefone e na rua.
Dos dados tornados agora públicos, cerca de 52% votaram a favor da proibição total do comércio de carne de cão. Do total dos entrevistados 70% indicou nunca ter comido carne de cão. O movimento de discórdia para com este comércio também se fez notar durante as sessões plenárias anuais da China deste ano, em que mais de 80 milhões de pessoas, através do voto online, concordaram com a proposta de Zheng Xiaohe, membro da Assembleia Popular Nacional da República Popular da China, relativamente à “sugestão de legislação para a proibição da entrada de carnes de cão e gato no mercado”.
Zheng Zhishan, que assumiu o cargo no International Fund for Animal Welfare, em entrevista com a agência chinesa, referiu que, contrastando com a ideia de países estrangeiros, a maioria dos chineses “adoram animais e protegem-nos”, sendo que a grande parte desconhece sequer esse nicho de mercado de “roubo-transportação-matança-venda de cães e gatos”.
O representante citou ainda um estudo feito em 2013, que indicava que 95% dos inquiridos “adoram animais” e “recusam-se ao consumo de animais de estimação”, considerando que “os animais devem ser protegidos”.
Gao Guang, vice-secretário geral da Associação de Carne da China, chegou mesmo a afirmar que na “China não existe a indústria do cultivo do ‘cão comestível’”. “O consumo de carne de cão é caso raro na China”, afirmou à agência.
O veterinário Liu Lang, também presidente da Associação das Clínicas dos Animais Pequenos de Pequim, afastou a possibilidade o cultivo de cães e gatos para consumo, sendo que, diz, é “algo que tem custos elevados, seja na alimentação ou vacinação”. “O período de cultivo também é muito longo”, apontou.
Dados das autoridades chinesas mostram que o preço da carne de cão, entre 2011 e 2014, variou entre os sete yuan e os 23 yuan por quilo. “(…) mostrando que só com roubo dos animais de estimação é que se pode ganhar dinheiro”, pois o segundo os cálculos de Xia Shaofei, Director do Departamento da Clínica da Universidade de Agricultura da China, para este tipo de carne ser rentável deveria custar mais de 100 yuan por quilo.
Questionado sobre os últimos dados, Albano Martins, presidente da ANIMA – Sociedade Protectora dos Animais, diz que a tendência é cada vez mais a da proibição.
“Basta ver que ainda há muito pouco tempo, grupos de activistas pelos direitos dos animais pararam, com a ajuda da polícia, milhares de gatos que iam ser consumidos. A polícia prendeu os transportadores, eles foram presos. Isto significa que na própria China as autoridades já não acham piada nenhuma a este tipo de manifestação”, argumenta, frisando que este tipo de festival “já não tem sentido numa China que se está a modernizar”.
Cada vez mais “a comunidade chinesa não aceita isto” e “é violenta para quem viola os direitos dos animais”. Albano Martins recorda uma manifestação que reuniu um milhão de pessoas na China contra este tipo de “costume”. A matança de animais domésticos, ou de estimação, “violenta os fundamentos humanísticos” e não existem razões culturais ou de necessidade, como por exemplo a fome, que justifiquem tal acto. “Não é cultural, nem para alimentação. Claro que durante a nossa história houve sempre pessoas que comeram animais, mas neste momento não tem razão de ser”, rematou.

Hipocrisia gratuita

Fátima Galvão, representante da MASDAW – Associação Protectora de Animais, mostra-se totalmente contra, mas aponta o dedo a todos aqueles que criticam este festival.
“É evidente que para mim conseguir-se acabar com o festival é uma vitória. É lamentável que ainda não se tenha conseguido. No entanto, ao mesmo tempo, existe uma grande hipocrisia entre as pessoas. É que isto é uma questão cultural, enquanto todo o resto do mundo se põe à apontar o dedo à China, deviam era pensar o que aconteceu aos animais que comem, como é que eles são criados e abatidos”, acusa.
É o bom comportamento que dá permissão à critica e por isso, Fátima Galvão afirma ser necessário consciencializar a população mundial do mal que se está a fazer aos animais de uma forma geral. Mudando isso, tudo muda, diz.
Em reacção, Albano Martins assume que esta é uma discussão muito acesa, mas não tem dúvidas de uma coisa, “as sociedades vão caminhando cada vez mais contra o abate de animais que estão próximos do ser humano e que com ele conseguem estabelecer uma comunicação”.

Com Angela Ka

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