Kuroi Yuki, Black Snow, 1965, Takechi Tetsuji

[dropcap style=’circle’]K[/dropcap]uroi Yuki, Black Snow, tem tudo o que se pode esperar de um filme japonês dos anos 60. É a preto e branco. Começa com a imagem de uma prostituta deitada numa cama, de barriga para cima, parcialmente coberta pelo corpo de um negro norte-americano da tropa. É um filme contra a presença dos americanos no Japão. Que mais querem?
Não há dúvidas que esta é a década mais interessante da história do cinema do Japão, mesmo que na seguinte se tenham feito filmes inesquecíveis. Contudo, nos filmes da década de 60, muito mais do que na que se seguiu, identifica-se um espírito do tempo que posteriormente se esbate em v´ảios tipos de filmes.
Não me estendo, já aqui se falou de mais de 20 filmes japoneses dessa altura e o isolamento das suas características está feito.
O que o cinema niilista, desencantado e cheio de ennui dos anos 60 nos demonstra é que nada mudou para lá das circunstâncias históricas e que hoje o Japão continua, por trás da cortina de luz e profusão frenética de artefactos e comida com que se exibe a si próprio, a ser o mesmo país lânguido do aborrecimento, da neve e da vacuidade do destino – uma doce indecisão.
Não escondo que por trás da minha dedicação ao cinema japonês está a dedicação ao próprio país. Não escondo que o cinema japonês é dos poucos que me transmite o cheiro da rotina doméstica e dos bares onde (ainda hoje) persiste um forte cheiro a tabaco.
Como acontece normalmente com este tipo de produções, por vezes filmadas em dois ou três dias, o baixo orçamento disponível não permite senão contratar um pequeno número de actores e filmar muitos exteriores – a escassez de meios uma vantagem no seu aspecto final.
As cenas seguintes ao genérico são muito sensuais: há um odor a tecidos de baixa qualidade impregnados de tabaco e humidade, enquanto se imagina um a perfume e a maquilhagem. O lugar é um de desolação e desafecto, um motel junto a uma base aérea americana ocupado por um pequeno grupo de prostitutas.
Kuroi Yuki é um filme erótico. Takechi Tetsuji tem 12 filmes listados no livro já aqui profusamente citado Behind the Pink Curtain, de Jasper Sharp, um que fala de modo muito completo sobre o cinema erótico japonês, um fenómeno típico do Japão que, inexplicavelmente, perdura.*
Repito. Não me alargo porque já aqui se falou várias vezes do cinema erótico dos anos 60, mas é útil lembrar que o erotismo aparece muitas vezes associado a preocupações estéticas e políticas radicais. É no cinema erótico que encontramos vários tipos de ousadias que estão muito para lá das sexuais.
É fácil de entender porquê. Como ainda hoje acontece em muito menor escala, o cinema erótico tinha um circuito de distribuição muito bem montado, com muitas salas exclusivamente destinadas à exibição de filmes deste género. Ao realizador de intenções estéticas vanguardistas colocavam-se dois cenários: ou fazia um filme avant-garde para ser visto por meia dúzia de pessoas num circuito muito reduzido de distribuição (se o conseguisse) ou erotizava as suas propostas fílmicas e tinha à sua disposição uma rede impecavelmente montada de distribuição que garantia que os filmes fossem mostrados e até fizessem dinheiro. Lembre-se que a dada altura o cinema erótico popular perfazia mais de 50% de toda a produção nacional.
Isto não invalida de modo algum a percepção generalizada de que uma parte muito significativa dos realizadores japoneses desta década e das seguintes não fossem obcecados por tudo o que tem a ver com o sexo (E a bebida. Um dos cheiros mais intensos do cinema japonês é o do uísque).
Takechi é conhecido não apenas por ter feito vários filmes eróticos mas como produtor e crítico de teatro (a sua interpretação moderna de peças de kabuki é ainda referência central) e teórico.
Este filme tem vários tipos de interesses e desinteresses. Um dos primeiros consiste em provocar a perturbação erótica não apenas através das imagens, como é corrente, mas igualmente através do discurso de algumas das suas personagens. Não há, aliás, tantas cenas de nudez e sexo como é normal, nem me parece que preencha à risca a obrigatoriedade de mostrar nudez de tantos em tantos minutos – uma estrutura que muitos outros passam a cumprir com rigor quando o género se formaliza.
Tem também uma cena antológica, a do genérico. Como é sabido, até hoje é proibido mostrar genitália e pêlos púbicos no cinema. Takechi contorna a obsessiva proibição, cómica e ostensivamente, mostrando um peludo sovaco em substituição.
Outro interesse reside no facto de que, ao contrário de outros autores de filmes eróticos da época que se apresentavam como revolucionários de esquerda, há uma envolvência de direita – segundo alguns até racista – nas ousadias de Takechi. Não é difícil de ver Kuroi Yuki como simplisticamente nacionalista se o virmos como veículo pouco subtil de culpabilização dos americanos pelos males japoneses. Takechi, no entanto, que pode ser entendido mais como um artista ligado ao teatro, é pouco conhecido hoje em dia, dentro e fora do Japão, não tendo sofrido a habilitação de autores de filmes semelhantes como Wakamatsu Koji ou Masao Adachi.
Por outro lado há intenções que se sobrepõem. A reacção negativa à presença dos americanos em solo japonês (ainda lá continuam e eu acho que esta base militar, a de Yokota, perto de Tóquio, ainda está activa) é uma preocupação contada em muitos filmes da época e já aqui por demais referida, comum à esquerda mais e menos radical e à direita.
Pouco interessa se nos lembrarmos da lindíssima cena horizontal em que uma das personagens corre nua ao longo da vedação da base Americana e que esteve na origem das objecções que foram levantadas ao filme e que se colocaram a nível político e a nível da moralidade.
Da base vem constantemente – algo que atravessa o filme como uma ferida ou como um grito – o barulho cortante dos aviões a aterrar ou levantar voo. Vê-lo como uma exibição de feridas (como a ferida sexual, causada pelos americanos, que aflige a boca de uma das trabalhadoras do bordel) é uma maneira de tirar prazer do filme. A menor das quais não será a que se desprende do rapaz da casa, filho de uma das funcionárias, Jiro, o causador de quase tudo. Jiro e tudo o resto, que se passa muito longe do mar, causa a náusea e a ansiedade esperadas num filme desta época e com estas características a uma escala pequena, num lugar em que, apesar da imensidão horizontal da base (que não se mostra), tudo é pequeno.

* Hakujitsumu/Daydream, também de Takechi, exibido em 1964, é um dos filmes eróticos japoneses mais conhecidos – por razões históricas que o leitor facilmente poderá encontrar em busca na internet.
Kuroi Yuki é conhecido por ter sido causa de prisão para o realizador, processo que o leitor encontrará também explicado do mesmo modo. Oshima, Suzuki, Mishima e Kobo Abe testemunharam a favor de Takechi e esta mescla de gente intelectual mostra que o apoio que o favoreceu (e que no fim levou à vitória no processo que lhe foi movido) veio de fundos com inclinações políticas muito diferentes.

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