Idos de Março

[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]inha razão César ao temer o ano 44, naquela tarde de 15 de Março sucumbia assassinado por Brutus. Também os Cátaros uns séculos após desceriam de Montségur, os últimos resistentes desta heresia tão especial que dera origem aos chamados «Homens Bons» e que no seu Maniqueísmo ajudara a uma civilização melhorada na região do Languedoc. Cá em baixo esperava-os a fogueira. Era a manhã de 16 de Março, de 1244. Pouco tempo depois, Jacques de Molay, o vigésimo terceiro Grão-Mestre da Ordem Templária, nascido exactamente no mesmo dia da extinção cátara, acabaria numa tarde de 18 de Março do ano de 1314, também ele na fogueira, depois dos anátemas que desferiu no Papa Clemente e no rei Filipe o Belo. Anátemas com carácter de maldição já que no espaço de um ano ambos morreriam e o malefício acompanhara os reis de França. Simão Botelho parte para o desterro nessa manhã de 17 de Março… A viagem para a morte em pleno mar e o amor estranho de Mariana…
De facto, os Romanos sempre temeram os cinco últimos dias que antecediam a Primavera. Muitos se fechavam em casa para escapar a tão nefasto instante. Os últimos dias do Inverno têm presenças assombrosas como se uma janela desse para o sublime, a dor, e o terror, emblematicamente na cúspide de Peixes, a casa zodiacal da memória universal, parece sim, que se abrem as portas para o improvável habitado. Podemos viver este tempo como uma anunciação de nós em vidas múltiplas, um resgate de todas as vidas que trazemos vindas, uma memória intercalada de estímulos antigos ligados ao sacrifício e a uma liberdade inesperada. Todo o tecido deste tempo nos atira para uma saudade de antanho, mas também para algo que estava oculto em nós. A morte aparece-nos como a mais estranha das missões e não raro sentimos que ela é uma passagem grandiosa, e dizer adeus uma manifestação poética como jamais tínhamos imaginado. Os que ficam nem sempre têm a sensação da forma mudada, da grande alquimia, pois que nos vamos formando nas horas seguintes e nas formas activas dos dias, mas, a neblina de uma vaga sensação de um tempo diferente, nos habita. 31316P19T1
Não só Simão Botelho parte para o desterro como o próprio Camilo nasceu nesse dia, não sei até que ponto ele nos quer dizer de si na imagem de Simão. Sabemos da sua índole complexa, anticonvencional e algo belicosa, da sua imensa necessidade de afecto e de paixão, de uma vida passada nos limites do admitido e com toda a carga de desvio e penas. A sua natureza típica de um romântico não foi indiferente a este personagem trágico que se debatia com uma dualidade amorosa e uma imensa lealdade para com o seu grande amor, este tempo de absorção entre a partida e o nascer, entre a personagem e a sua própria, ocupa hoje o dia toda em reflexões, diria até, que extemporâneas.
Mas neste dimensionar está a vida daqueles que viveram no limite, dos que porventura chegaram a um mundo onde a ideia fora mais de partida para um desterro do qual só as águas afogariam na sua imensidão de destino. Vemos como a febril herança de um escritor se nos alucina e perturba, como aquela vertigem foi grandiosa, também, como todos os resultados foram válidos e trabalhosos, como se chegou à cegueira e se contorceu a vida numa alma que não tinha mais razão de viver. Os seus olhos viram a tragédia que a própria vida não foi capaz de suster. Ninguém morre porque quer, morre-se por falência e desistência, morre-se por condição. E a de um homem a quem lhe é amputada a vida, esta poder-se-á revelar-se uma jaula de infortúnios. Essa decisão não é um pedido, ninguém pede a outro tal trabalho se ainda lhe for dado discernimento para o efectuar. Ninguém convoca outro para assassino, sobretudo um poeta, um escritor, um homem livre. Não vejo Antero, Camilo, Espanca, Sá-Carneiro, pedirem para os matarem. Eles, não pedem, eles exercem a força do destino. Esta diferença faz a distinção da tão discutida Eutanásia. Estes são os dias que nos informam da natureza trágica do Homem, e quando tocamos nessa fímbria não nos é dado discutir formas nem comandar outros para resoluções tamanhas, estamos face ao desconhecido, a um processo de transformação que desagua numa surpreendente vitória.
Horderlin, o poeta dos poetas, nasceu a vinte de Março. O seu espectro, a sua natureza, eram a de um ser assaltado pela beleza, pela transparência das coisas sublimes, porém a sua vida foi metade passada nas sombras da loucura que não notara e que imprimiu com voz de arauto. Todas as coisas prodigiosas morrem e nascem neste ciclo dos Idos de Março e nós limpamos uma a uma as nossas quentes lágrimas porque o Sublime é triste e a Beleza também. Como se fosse uma ferida o tempo se desnuda e nos mostra o que não vimos em outros momentos, e a Graça é o « Dom das Lágrimas» as oblatas da antiga liturgia cristã o refúgio de uma salvação. «Vacilas por ternura Deus omnipotente da pedra fonte da água viva rompeste a um povo sedento retira da nossa dureza a compunção das lágrimas longo pranto por nossos pecados concede pois vendo-nos assim te compadeces e obtemos remissão» .
É uma digna forma de estarmos preparados, este suor das nossas entranhas, por que os Idos de Março são de facto os que nos arrancam da flama da nossa carne o mais comovente de nós, esta passagem pelo lago prateado e pelas dores que param, porque passada a dor, todo o Universo é um canto grave de uma doce e funda tristeza. Estamos abertos para o imensurável mistério de Deus, e ao focar a existência de Jesus no signo dos Peixes, damos-lhe as qualidades deste momento cósmico, como se nestes dias fosse ele o nascituro.
Lembro-me da cascata de poetas que em Março de 1993 morreram no espaço de uma semana nestes Idos, e nem por isso a memória se me torna tormentosa, eles partiram na sua fase de expressão superior, e todo o homem animado, que tem de facto uma alma, convoca os outros para a partida e juntos vão numa saga que a nós ainda não nos é dado compreender. Creio na santidade do propósito bem como no invulgar poder da invocação. Ninguém morre só, quando foi habitado por certos elementos : o Universo conspira na sua deidade e força o encontro entre pares. Assim nós, que deste lado do vitral fugimos aos sonhos e nos adensamos num real imposto, possamos um dia chegar a eles de forma transparente. Estes são os Idos de Março, os mais assombrosos e transcendentais, e ninguém que tem um destino escapa indelével que seja ao seu tão inigualável encontro.
E terminam neste lago:

Dignai-vos dar em abundância
Luz da inteligência verdadeira a estes submissos servos
Lágrimas aos olhos
Contrição ao coração
Até que purificados do actual luto e da tristeza espiritual
Da morte eterna nos afastemos como de uma ruína.

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