Reportagem | Homossexualidade, o tabu quase visível

Ser gay ou lésbica em Macau é hoje mais fácil do que há uns anos atrás. Mas a pequenez do território e a forte cultura tradicional chinesa fazem com que ainda seja difícil assumir uma relação em pleno. A homossexualidade continua a ser um tabu tolerado mas não debatido, e nem mesmo na comunidade portuguesa as coisas são mais fáceis

Calvin sabe que gosta de homens mas sente-se obrigado a casar com uma mulher para garantir a descendência familiar. António percebeu, desde o primeiro momento em que viu um tronco nu masculino na televisão, ainda em criança, que o sexo igual ao seu o atraía, mas só contou a uma prima mais próxima. Milo namora com um homem na Holanda e a família sabe de tudo. Miguel vive bem a sua homossexualidade e já não se importa com o que os outros pensam de si. Luciana é bissexual e também vive bem com isso.
Todos eles são chineses nascidos em Macau ou portugueses que fizeram do território a sua casa. Vivem a homossexualidade de maneira diferente mas afirmam: apesar de uma maior abertura, continua a ser um assunto que é reconhecido, mas sobre o qual as famílias, patrões ou colegas não falam. A pequena dimensão do território e os fortes laços da cultura chinesa dificultam uma maior expressão da sua sexualidade. Devido à quase inexistência de espaços “gay friendly” ou de actividades de apoio à comunidade LGBT, as aplicações de telemóvel ou internet acabam por servir de porto de abrigo. Para falarem abertamente do assunto, nenhum entrevistado aceitou ser fotografado ou dizer o nome verdadeiro, muito menos a profissão.
António, chinês nascido em Macau, nunca contou à família porque tem a certeza de que esta nunca aceitaria. “Acredito que a sociedade, no geral, tolera a existência de casais do mesmo sexo a viverem juntos. Contudo, não me sinto confortável a fazer isso ou a ter uma relação de forma aberta porque não quero que a minha família saiba. Uma vez que Macau é um território pequeno, e se me assumir como gay de forma frontal, a minha família vai saber. Sem a minha familia saber considero um dia viver com alguém. Acredito que é mais difícil ser gay em Macau devido ao tamanho do território”, contou ao HM.
A cultura chinesa faz com que seja mais difícil a um homem assumir a homossexualidade, garante António. “O estereótipo da homossexualidade na cultura chinesa tradicional é que todos os homens gay agem de forma feminina e preferem sexo anal. Esse é o estereótipo existente na sociedade chinesa em Macau. Também pensam que estão a rejeitar a sua herança cultural (不孝) porque um dos deveres do homem é reproduzir-se e continuar o nome da família. A geração mais velha também fica preocupada com o facto de ninguém da família se sacrificar por eles no futuro devido à falta de descendência”, aponta.
No caso de Calvin, ainda não contou à família, e provavelmente nunca o irá fazer. “Talvez venha a contar, mas não tenho a certeza quanto a isso”, contou ao HM. “Macau não é uma cidade muito gay friendly. Não há actividades ligadas à comunidade LGBT, nem espaços gay. Os homossexuais ou lésbicas só se podem conhecer através de aplicações de telemóvel. Segundo as velhas e tradicionais crenças chinesas a homossexualidade é uma doença. As famílias chinesas em Macau vão querer sempre que o seu filho ou filha não seja gay”, contou.
Apesar disso, Calvin mostra-se confiante com a evolução de mentalidades. “Não sei quanto tempo vai demorar, mas há uma esperança para os gays em Macau. O facto de dois rapazes darem a mão enquanto passeiam na rua é algo normal na Europa ou na Austrália, e as pessoas olham para eles como se fossem um casal heterossexual normal. Aqui, a história é completamente diferente.”

A excepção à regra

O caso de Milo Cheung será certamente uma excepção à regra: a família é chinesa de Macau e ele há muito que mantém uma relação homossexual aberta no país onde vive, a Holanda. “A minha família está feliz com o facto de eu estar numa relação. Sabem da minha relação, falam com o meu companheiro, mas referem-se ao meu namorado como meu amigo, sem falarem sobre ele. Às vezes perguntam-me quando é que as coisas se tornam mais sérias, quando vou crescer e arranjar uma namorada. É algo contraditório, mas eles encaram a minha relação como sendo fruto de uma “fase rebelde”. Tenho uma prima que tem uma namorada há dez anos, todos na família sabem, ela é bem-vinda em todos os encontros familiares, mas é sempre chamada de amiga e nunca de namorada”, contou ao HM por email.
Apesar disso, Milo Cheung teme expor os afectos quando visita o território. “As gerações mais velhas expandiram um pouco os seus horizontes, estudaram no estrangeiro, viajaram, mas não vejo grandes diferenças no que diz respeito aos direitos dos homossexuais e à sua aceitação, isto falando da sociedade no seu todo. Nunca me passou pela cabeça beijar o meu namorado ou dar-lhe a mão em público. Não iria sentir-me ameaçado, mas observado. Viver com alguém não deve ser um problema, tendo em conta que faz parte da cultura chinesa não interferir nas questões pessoais ou em tudo o que acontece dentro de casa. Para o bom e para o mau”, apontou.

Portugueses fechados

Apesar de em Portugal a sociedade ter mudado a sua postura em relação aos homossexuais, principalmente depois da aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, os portugueses não vivem a sua homossexualidade no território de forma aberta, devido à pequena dimensão da comunidade.
Miguel, engenheiro a trabalhar num casino, sente isso na pele, e garante que não existe uma maior abertura face à comunidade chinesa. “Não me parece (que isso aconteça). Vivo de forma tranquila a minha homossexualidade e estou a borrifar-me para o que as pessoas pensam, mas também não ando propriamente com um autocolante na testa.”
“A minha sexualidade não é tema de conversa com os meus amigos de Macau, mas estou convencido de que a maior parte sabe que eu sou gay, mas não é assunto. Nunca ninguém me perguntou se era”, disse ainda o engenheiro.
Luciana é bissexual e trabalha como secretária. Apesar de ter chegado de Portugal há pouco tempo, garante que “isto é muito pequeno e toda a gente se conhece, e ainda mais na comunidade portuguesa. Essa questão deixa-me insegura, numa comunidade tão pequena às vezes pode ser um pouco complicado”.

Lésbicas: maior aceitação

Se em Macau ver dois homens de mão dada ou aos beijos na rua pode gerar reacções, a verdade é que ver duas mulheres juntas é bem mais comum e aceitável.
“Curiosamente é mais comum ver duas raparigas de mão dada, tenho visto muitas mulheres, filipinas acho, e com uma atitude aparentemente tranquila quanto à sua exposição”, apontou Miguel. “Já falei com chineses e eles dizem-me que isso tem novamente tem a ver com a herança cultural chinesa, já que há uma enorme esperança depositada no filho masculino. E, de certa forma, o papel social das mulheres é mais secundarizado. O que os chineses me dizem é que das mulheres não se espera nada. É um bocado indiferente se andam de mão dada na rua com outra mulher ou se se deitam umas com as outras. É um assunto que não se discute”, referiu.
Mas se a pressão familiar acontece no lado masculino, as mulheres lésbicas também sentem na pele a necessidade do casamento. “Conheço um casal de duas raparigas que estavam juntas desde o secundário e uma das raparigas acabou porque decidiu que era altura de casar, por pressão da sociedade e da família”, contou Luciana.
Ignorada ou passada para segundo plano, a homossexualidade é muitas vezes encarada como uma fase passageira. “Tenho quase a certeza que as famílias sabem, só que simplesmente a sociedade vive de forma tão harmoniosa que prefere não falar do assunto. Sabem que os filhos têm estas relações mas não dizem nada e sempre podem ter aquela possibilidade de “um dia, quando isso te passar, arranjas alguém”. No trabalho sabem mas ignoram. Conheço pessoas que trabalham na Função Pública, e simplesmente não comentam. É como se não existisse. Quando há jantares, as pessoas não levam o seu par”, rematou Luciana.

Boom, o bar que pretende mudar mentalidades

“Desde que abrimos o bar nunca tivemos problemas”

Há sete anos Jonathan Chong abriu o primeiro bar gay em Macau, o Candy Bar, mas um ano depois o espaço fechava portas. De regresso ao território e noivo e Piotr Szymczuk, Jonathan abriu o “Boom Bar” há cerca de um mês na Taipa, que promete noites de “speed dating”, shows travestis ou noites só para mulheres. boom bar
“Sentimos que havia potencial, e certamente há um mercado e uma procura junto da comunidade gay em Macau, porque costumam sair para Hong Kong. Foi mais fácil abrir este bar do que aquilo que estava à espera, porque muitas pessoas pensam que é muito difícil para a comunidade chinesa aceitar a homossexualidade. Penso que as novas gerações mudaram muito, então aceitam”, contou ao HM.
“Desde que abrimos que nunca tivemos problemas”, disse Piotr. “Na verdade as pessoas gostam do bar porque criamos um espaço para relaxar, falamos com as pessoas para que se sintam em casa. Criámos um espaço diferente porque podemos, gostamos de conversar com as pessoas.”
Todos podem divertir-se no Boom Bar, que até já tem clientes heterossexuais assíduos. “Quero fazer algo pela comunidade, porque quando percebemos pela primeira vez que somos gay, especialmente em Macau, não há forma de conhecer pessoas. Com a internet e aplicações é mais fácil hoje em dia, mas para mim conhecer alguém cara a cara num bar é diferente”, disse Jonathan.
Piotr, que saiu da Polónia por causa da discriminação, garante que em Macau a homossexualidade não é falada, mas também não origina violência. “A boa coisa dos chineses é que são conservadores, mas não são agressivos. Na Polónia muitas vezes senti medo, porque as pessoas olham directamente para ti e sentes-te ameaçado. Os chineses não são violentos”, contou.
“A sociedade está mais aberta, especialmente as gerações mais novas. Em relação aos mais velhos, tenho amigos que ainda têm medo que as pessoas descubram. Os mais jovens são mais abertos e há muitos deles que já contam às famílias. Os nascidos na década de 70 ainda estão presos e escondem aquilo que são, mas os mais novos são mais abertos em relação à sua sexualidade”, frisou Jonathan.

Anthony Lam, da Associação Arco-Íris

“Há mais pessoas conscientes dos direitos LGBT”

Anthony Lam é desde 2013 o principal rosto da Associação Arco-Íris, a primeira do território a colocar a homossexualidade na agenda política e social. Com apenas mil seguidores no Facebook, a associação continua a não ter membros formais. Anthony Lam garante que a comunidade continua a não querer expor-se demasiado, apesar de uma maior aberta de mentalidades.
“Desde a criação da associação iniciámos uma discussão pública sobre o assunto e há mais pessoas conscientes dos direitos LGBT. Nos últimos anos temos vindo a trabalhar para atrair as atenções do público, mas vemos que os gays continuam a não gostar deste tipo de actividades, preferem coisas mais discretas. Então daqui a um ano ou dois trabalharemos nesse sentido. O debate sobre as questões LGBT ainda não é muito popular, em Macau os hotéis e casinos ainda não proporcionam uma resposta aos casais gay, ao contrário de Las Vegas”, exemplificou.

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“Temos sido bem aceites pelo público em geral, se a situação dos LGBT em Macau se tornar mais aceitável, a associação também o vai ser. Na estrutura familiar chinesa nem o amor é debatido de forma livre, por isso a falta de discussão não é apenas um problema da comunidade LGBT. É uma questão cultural”, rematou Anthony Lam.

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