Marketa Lazarová, Frantisek Vlácil, 1967

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]arketa Lazarová é o melhor filme que conheço que mais desconhecido parece das massas. Não encontro muitas pessoas que o tenham visto ou que sequer dele tenham ouvido falar. Não que essa ignorância me perturbe, antes pelo contrário. Se há algo que Markéta nos ensina é a permanecer impassíveis no cimo de um cavalo, bem armados, prontos a dispensar o golpe a quem cometer a imprudência de nos melindrar.
Markéta arrasta-nos – brutalmente, desde o seu início invernoso belo a preto e branco – para a Idade Média. Numa história de contornos nem sempre bem definidos, seguimos os movimentos de vários grupos: um bando cruel, o dos Kozlík; os homens de Lazar, mercador medroso, pai da voluptuosa e virginal Lazarová; o regimento leal ao Rei e um grupo de alemães.
É um daqueles filmes – são poucos os que o conseguem – que nos podem levar a pensar que, afinal, o cinema é uma arte para levar a sério e não apenas um entretenimento mais ou menos artístico para adolescentes ou intelectuais preguiçosos.
A história passa-se no século XIII mas a sua estética é ousada, modernista, mesmo vanguardista – sem chegar nunca ao abstraccionismo. Os planos em câmara subjectiva e alguns zooms são particularmente eficazes. Não há nenhum outro filme de Frantisek Vlácil que mostre a tal ponto esta escolha experimentalista, uma que poderá ter sido promovida pela sua passagem pelo Czechoslovak Army Film Studio, onde se praticava um cinema (não ficcional) com estas características e pela sua ligação às artes plásticas.
O próprio Vlácil confessa que chegou ao cinema um pouco por acaso (enquanto cumpria o serviço militar) e que os seus interesses primeiros se encontravam mais perto das artes plásticas, da arquitectura e da música. E também da literatura. Quem quiser pensar no realizador checo como um poeta que usa o cinema não deixaria de cair nas boas graças do autor.
Certamente que no vivíssimo romance de Vladislav Vancura*, que serve de base ao filme de Vlácil, este encontrou inspiração visual. O próprio nos fala (num pequeno documentário) da sua dificuldade em encontrar textos para os seus filmes quando a sua preocupação é tão fortemente visual e não narrativa.
Não ter frequentado escolas de cinema nem partir para o cinema através de uma apetência por ele permite uma originalidade e uma frescura que outros, poluídos pelo amor que lhe dedicam, não exibem. O amor pode originar a fraqueza.
Se pensarmos que Vancura realizara alguns filmes de metragem longa informados pela estética vanguardista soviética podemos aqui identificar uma herança. O filme de Vlácil estrutura-se em vários quadros que espelham as opções narrativas, nem sempre de leitura fácil, do romance de que partiu. As loucuras são semeadas ao deus-dará é a primeira frase do livro.
Para além destas circunstâncias, o ambiente estético da altura era propício ao experimentalismo. Mesmo que Markéta se não inscreva naturalmente no movimento da nova vaga checoslovaca, esta é uma época de ousadias. Sedmikrásky/Daisies, de Chytilová (já aqui admirado) é de 1966, assim como o enigmático, cómico e perturbador Ostre sledované vlaky/Closely Watched Trains. Do mesmo ano de Markéta é o famoso Hori, ma panenko/The Firemen’s Ball, de Milos Forman e de 1969 é um filme também há pouco tempo cronicado nesta página, Spalovac mrtvol/The Cremator, de Juraj Herz.
Sem querer estar a procurar demasiadas semelhanças entre o livro (de difícil adaptação pela sua arrogância narrativa) e o filme, note-se que a velocidade de um é a velocidade de outro. A vantagem do filme reside também no modo excêntrico como usa o som, por vezes autónomo em relação à imagem – como se nos quisesse assustar.
O bando Kozlík é um bando de bestas, um bando canídeo, vestido de peles e com uma crença profunda no poder da força. A sedução de Markéta Lazarová começa por ser a sedução do golpe mas passa por muitas outras, carnívoras, sexuais, religiosas, católicas e pagãs (as melhores) e paisagísticas. Até tem freiras e o destino primeiro de Markéta, antes da violação e da sua conversão ao amor por Mikolás, filho preferido do bandido, é o convento.
É raro um filme de época atingir este nível de autenticidade. Quem estiver interessado poderá tentar saber em que condições de obsessiva clausura e imersão Vlácil manteve os seus actores. No fim das quase três horas que dura é difícil de afastar esta sensação de imersão total. Andrei Rublev causa um transporte semelhante mas o de Markéta é muito mais físico e muito mais brutal. Pensar em muitos outros filmes passados na mesma altura só pode causar irrisão.
Se a violência do regime autoritário sob que se vivia na Checoslováquia nos anos 60 tem par neste filme não sei. O que interessaria é saber se é possível que a arte produzida sob um regime totalitário (e especialmente uma arte de massas como o cinema) não é sempre uma referência à clausura que aquele impõe. O que é certo é que Vlácil mais não conseguiu reunir o dinheiro e condições de liberdade que lhe permitissem fazer um filme semelhante.
Quando as tropas do Capitão leal ao Rei atacam a fortificação de Kozlík, sob o olhar atento do frade, quem decide os destinos do homem não é Deus mas a guerra, a força bruta. Troça-se de tudo como o Capitão troça do alemão que é suposto proteger e ajudar a recuperar o filho.
“mein sohn, mein sohn”, diz o estúpido do velho quando o vislumbra, branquinho e amaneirado, junto da paliçada dos bandidos sujos e vestidos de peles e armados para matar. – Deves ficar sabendo, velho alemão, que o teu filho, o Conde Kristián, se apaixonou por uma das filhas do bandido, Alexandra coberta de sujidade, cabelos emaranhados e sacerdotiza de amores pagãos, assim como Markéta, filha de Lazar, e assim Lazarová, não resistiu aos encantos de Mikolás Kozlík. Um filme de bandidos, é o que é.
E o último filme de Alexei German? Trudno byt’ bogom/Hard to be a God, 2013, baseado num romance dos irmãos Strugatsky.

* Markéta Lazarová existe em tradução portuguesa, feita directamente do checo por Anna e José de Almeida, editora Quidnovi.

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