VozesTempo e memória António Conceição Júnior - 4 Jan 2016 [dropcap style=’circle]A[/dropcap]A passagem do Tempo incorpora em nós passado e memórias. E no segundo que medeia entre o velho e o novo, acorre-me um outro tempo, neste mesmo lugar. Macau, a Calçada do Tronco Velho e um vetusto edifício que se foi nos vendavais gerados por gente que hoje nem memória são. À esquerda de quem sobe, o passante que olhasse para as primeiras janelas do rés-do-chão veria homens debruçados, manipulando pedaços de chumbo, e sentiria um forte cheiro a tinta. Aquele casarão era misterioso. Bocas maledicentes segredavam rumores de que ali mandava um perigoso comunista, o republicano “Monteiro das barbas”, que para aqui se degredara para estar próximo dos camaradas do outro lado das Portas do Cerco. Ali dentro trabalhava-se até muito tarde. Funcionava aí o “Notícias de Macau” que Hermman Machado Monteiro havia fundado em 1947, sucedendo ao “A Voz de Macau”, do Capitão Domingos Gregório da Rosa Duque. Os tipógrafos viam-se da rua, compondo, letra a letra e com rapidez, colunas que se iriam encaixar umas nas outras de um modo tão anacrónico quanto, aos olhos de hoje, é a máquina de imprimir. Junto às janelas dos tipógrafos, comandados pelo senhor Jacob, que naquele tempo era assim que se tratavam os mais velhos, situava-se a porta de entrada. Esta dava para um largo átrio, em tijoleira vermelha, de luz coada, sábia medida para manter a frescura dos dias ardentes. Uma escada em L, que chiava, dava acesso ao andar superior onde havia dois caminhos a tomar. À direita, a zona da administração onde trabalhavam duas simpáticas senhoras. Um pouco mais à frente vislumbrava-se uma papaieira que anunciava o grande jardim, que confinava com a igreja de Sto. Agostinho. À esquerda, percorrendo uns escassos metros e abrindo uma porta de vaivém, chegava-se à sala da redacção com inúmeras mesas frente a frente, munidas de máquinas de escrever. Numa dessas mesas, Patrício Guterres matraqueava impiedosamente a sua Remington que um dia descobri já não ter letras nas teclas. No gabinete que dava para a redacção, trabalhava Luis Gonzaga Gomes, vizinho de casa e a quem todos chamavam de “Inho” Gomes. De poucas falas e que, para minha surpresa, conseguia andar sem barulho, deslizando pelo sobrado antigo. Tão metido consigo, era quase uma sombra. Só mais tarde vim a ler os seus livros, com dedicatória aos meus pais, que publicou nas oficinas do jornal. Chegavam aos poucos os senhores Anízio, Raul da Rosa Duque, José dos Santos Ferreira, meu tio Adelino da Conceição, Mário de Abreu e o Major Cabreira Henriques, que se detinha em longas conversas com meu Pai. A sala da redacção ia ganhando vida à medida que as horas passavam e o senhor Jacob entregava linguados para serem corrigidos, que aquilo era obra para muitas horas. O meu fascínio ia sobretudo para Hermman Machado Monteiro e o seu charuto. Falava pouco, como que pairava por lá, alentando com a sua presença toda aquela plêiade de gente. Recordo que no Fim de Ano, naquela casa de sobrado que rangia, havia sempre uma ceia aberta a todos e brindes com Vinho do Porto. Sabia que Hermman Machado Monteiro vivia no Hotel Riviera. Visitei uma vez, com meu pai, o seu quarto, enorme, com varanda para a Praia Grande. Tinha dois poisos preferidos, onde gostava de reunir os seus colaboradores. O restaurante do próprio Hotel Riviera, onde se reuniam em ampla e culta cavaqueira aqueles que seriam a Tertúlia do Notícias de Macau. No Fat Siu Lao, onde ia com tanta frequência que ficou na ementa o “Bife à Monteiro”, fazia questão de reunir todo o pessoal que trabalhava no jornal, desde redactores, revisores, director e tipógrafos. Nunca me perguntei se o jornal era viável. Acredito que não. Como não o era o Círculo de Cultura Musical que Luís Gonzaga Gomes dirigia. Mas outros elevados valores se levantavam. O Dr. Pedro José Lobo, verdadeiro Mecenas no panorama cultural de então e figura a requerer estudo biográfico, era também assíduo nestas tertúlias. Era um amante da música e, além de compositor, podia dar-se ao luxo de ter uma rádio, a Rádio Vila-Verde, em chinês, na sua mansão, e a Rádio Vila-Verde em Português, na rua Francisco Xavier Pereira. Meu pai, António Maria da Conceição, foi o último director do “Notícias de Macau”. Viu, ironicamente, fecharem-se as portas com a liberdade de Abril. Uma estranha comissão ad hoc desferiu o golpe final a um jornal que tinha por tradição juntar todos sem distinção. Meu pai escreveu o último editorial, à guisa de saudação final, que intitulou “Morituri te salutant”. Malhas que o Império tece… Antes, a marcar o Tempo, penduravam-se calendários nas paredes. Hoje, perdura a Memória, essa intangibilidade desconhecida por tantos. Os anos sucedem-se e, no bolor do tempo, pouco permanece. Que tenham um Bom Ano.