h | Artes, Letras e IdeiasKaifeng e dez metros abaixo José Simões Morais - 11 Dez 2015 [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]ituada na província de Henan, setenta quilómetros a Leste da capital Zhengzhou, Kaifeng, a Sul do Rio Amarelo, tem uma longa História, encontrando-se no grupo das sete cidades que foram capitais da China. A chegada a Kaifeng é no mínimo estranha. Apanho um táxi, na parte Sul da cidade onde a estação dos caminhos-de-ferro e o terminal Sul dos autocarros se encontram. Perguntando a tarifa para chegar ao hotel que trago referenciado, o motorista responde seis yuan. Lá partimos e de facto, ao chegarmos é a quantia que marca no taxímetro. Pára e quando me preparo para pagar, diz-me que o hotel está fechado. O cordão que se encontra na porta giratória leva-me a pensar que é realmente verdade, mas fico intrigado porque é que não me tinha dito mais cedo. Depois, propõe-me um hotel que é da mesma categoria e para lá nos dirigimos, tendo o complemento da viagem custado apenas mais um yuan. Até aqui tudo normal; apenas poderia ter-me avisado antes que o hotel estava fechado. Em comparação ao hotel que eu tinha indicado, cuja fachada muito rococó continha altas colunas, este onde me hospedo, apesar de ser da mesma categoria e mais discreto, é ainda mais barato, tendo um quarto de banho do tamanho do quarto. Para mais, só o soube depois, encontra-se na rua onde à noite decorre um extenso mercado, com grande quantidade de cozinhas ambulantes, que cria um espectáculo a não perder. Mais tarde, volto a passar pelo anterior hotel e percebo que tinha sido enganado pois, quando por lá chegámos, encontrava-se ele apenas em limpezas. Enfim, tenho um quarto onde dormir e o assunto está arrumado, não fosse a tentativa que faço em perceber o porquê. Talvez o taxista tivesse comissão! No dia seguinte comprovo essa real conclusão quando, após um novo turista ser conduzido ao quarto, o taxista sai do carro e dirige-se à recepção onde recebe uma nota de dez yuan por ali colocar mais um hóspede. Kaifeng é uma cidade plana e por isso, interessante para ser explorada de bicicleta. A parte antiga encontra-se circundada pela muralha e espanta, pois não tem edifícios altos, sendo a maior parte das casas de dois andares. Ainda por cima as ruas e avenidas são largas, o que lhe dá um imenso Céu. Tal amplia a dimensão da sua luminosidade, o que permite à visão agarrar os edifícios escuros de madeira, que na maior parte das cidades passam despercebidos pois, ficam escondidos pela força do labor humano, que absorve toda a atenção. Assim, a cidade com um ar lavado e fresco, tornou-se um lugar muito agradável nos dias que por aqui permaneço. Memórias dos sabores Após percorrer para Norte metade da Rua Jiefang, com inúmeras lojas de antiguidades e livrarias, decido caminhar pelas travessas e seguir o quotidiano viver da cidade, em lugares que não se mostram aos turistas. Abre-se Kaifeng nas suas provincianas características. O leiteiro percorre as ruas anunciado pela monocórdica sonoridade que vai repetidamente saindo de um primitivo aparelho colocado no guiador do triciclo. Na parte traseira deste, transporta as vasilhas de alumínio. É ver o rodopio das pessoas a sair apressadamente de casa, muitas vestidas como se acabassem de saltar da cama e com os jarros já cheios e o leite pago, espreitam para o fundo da travessa contígua para perscrutar se a senhora que vende o tofu se encontra por perto. Com uma imagem a lembrar as leiteiras que durante a nossa infância se colocavam na esquina da rua com o mesmo tipo de vasilhame e aí esperavam os quotidianos clientes, recordamos só faltar o padeiro na sua distribuição de casa a casa, onde colocava o pão nas sacas dependuradas na porta. E não é que poucos metros a seguir, ao olhar pela vidraça vemos sair do forno de lenha uma fornada de bolos de arroz. O aspecto é exactamente como o que tenho do tempo de criança e que desapareceu com o querer requintá-lo para melhor atrair os clientes. Como há muito não provo aquela guloseima e ainda por cima, desde que estou em viagem pela China, pão fermentado e crocante, ou bolos, é algo que não ponho a vista em cima, logo radiosamente entro pelas portadas abertas de uma casa de madeira, sem nenhum placar a indicar ser ali uma loja. Quero um bolo para comer ali e outro para levar. Dizem-me para esperar. Estranho, pois basta entregar-me o bolo; ainda por cima quentinho, que contrabalança com o vento gelado que fora sopra. Volto a pedir para me darem já um para comer e é quando recebo a explicação que falta colocar-lhe a gema por cima. Alto aí, não me vão estragar o que colocou a salivar o meu imaginário de infância, para me trazer à realidade actual. Espantada, a senhora de meia-idade tenta de novo convencer-me que o bolo fica muito melhor com a gema mas, perante a minha sofreguidão em tê-lo nas mãos, logo, ainda contrariada me o entrega. É assim que consigo de novo provar, algo que há muitos anos não tenho acesso. Foi o melhor bolo de arroz que comi! Os judeus de Kaifeng Sabemos estar a cidade referenciada como tendo uma população de judeus. Quando a dinastia Song do Norte (960-1127) fez de Kaifeng a sua capital, havia aqui já uma comunidade de judeus com um rabi, que segundo se crê chegaram à China como mercadores durante a dinastia Tang. Em 1163 construíram uma sinagoga em terreno oferecido pelo Imperador Xiao Zong (Zhao Shen 1162-89) que ficou conhecida como Templo da Pureza e Verdade. Foi ela destruída durante as conquistas dos mongóis e voltou a ser reconstruída em 1279, tendo em 1421 sido reparada. O número destas famílias era de dezassete, como consta numa pedra gravada em 1489 que se encontra no museu da cidade e tinham como apelidos Ai, Jin, Lao, Li, Shi, Zhang e Zao. Se no século XIII contavam com quatro mil pessoas, diminuíram para metade passados três séculos. O missionário jesuíta Mateus Ricci relatou que, quando vinha de viagem desde Beijing, tivera como companhia um judeu de Kaifeng, o que muito o admirou e por isso pediu a um seu, da Companhia de Jesus, que aí se deslocasse para averiguar. Muitos foram os judeus que ocuparam altos cargos no exército e se distinguiram como oficiais civis, estudiosos e físicos. Em 1642 o major Zhao Chengji foi um deles, que ao comando de tropas defendeu Kaifeng do exército de Li Zicheng. Nesse ano, Li tinha-se autoproclamado Rei de Xinshun e continuava a lutar contra a dinastia Ming. Em 1866, a comunidade não tinha rabi e as famílias judias eram muito pobres, tal como a sinagoga estava em ruínas, devido às constantes inundações. Pelos casamentos com chineses, dissolveram-se na comunidade e já no princípio do século XX tinham perdido as suas tradições e ligações religiosas. Agora, apesar de aproximadamente duzentos dos actuais habitantes ainda serem descendentes de judeus, mas não praticantes, são por vezes confundidos com muçulmanos e cristãos, que também existem em certa quantidade em Kaifeng. Na Rua Beitu, no lugar onde se encontrava a sinagoga, está hoje o Hospital do Povo número 4. O Parque Tei Ta As muralhas, com que a parte antiga da cidade está cercada, foram construídas pela dinastia Song do Norte (960-1127), que fez Kaifeng a sua capital. Se junto à parte Noroeste das muralhas encontro na borda do lago Xibei uma réplica da porta Tiannan de Beijing, onde não falta o retrato de Mao Zedong por cima da encerrada entrada, tudo com um ar muito abandonado, já no canto Nordeste visito o Parque do Pagode de Ferro (Tei Ta). Aí o Pavilhão Jieyin com a estátua em bronze do Buda do Futuro feita no século V e uma pedra de Taihu enquadram-se no cenário com o alto pagode, que em descampado domina a paisagem. Construído em 1049, com uma forma esguia e octogonal, tem cinquenta e cinco metros de altura e treze andares, apresentando-se feito em tijolo vidrado com uma cor de ferro e por isso, recebeu o nome de Pagode de Ferro. Já a sua decoração, feita toda com uma graciosa figuração variada em baixos-relevos nos tijolos, contraste com o interior do pagode. Extremamente difícil de subir e só até meio, dá acesso apenas a dois postigos abertos para o exterior, de onde se pode apenas ver uma pobre paisagem, que não vale o esforço. Regresso para o centro da cidade e primeiro vou ao Templo taoista de Yanqing, que data de 1233 e tem o Pavilhão do Imperador do Jade com um invulgar estilo de arquitectura. Depois sigo para Leste e encontro o Templo do Primeiro-Ministro (Da Xiangguo), construído em 555 e que atingiu o seu apogeu durante a dinastia Song do Norte. Com a inundação ocorrida em 1642 ficou destruído pelas águas do Rio Amarelo e só foi reconstruído em 1766. No templo, a peça que mais surpreende encontra-se num pavilhão octogonal por detrás do salão principal e é uma enorme estátua dourada da Deusa Guanyin dos mil braços. Extenuado de um dia a percorrer a cidade, sigo para o hotel para tomar um banho e pelo caminho vou atento, para encontrar um restaurante que sorrisse aos meus olhos. Não sei se é pelo cansaço, ou não ter passado na rua certa, estou a chegar e nada registo. Ao virar para a rua do hotel, a grande animação de luzes a ocupá-la permite ver cozinhas ambulantes, umas a seguir às outras, com mesas e cadeiras onde, sentadas, muitas pessoas comem e bebem. Está encontrado o local para a refeição do dia! Após refrescado de um dia intenso, volto ao mercado nocturno de comida e percorro as várias tendas com rodas, escolhendo umas quantas espetadas de carneiro e um pão achatado com carne dentro. Para retirar a muita poeira da garganta, uma cerveja de produção local. Enterrado pelas inundações Kaifeng, situada a alguns quilómetros da margem Sul do Rio Amarelo, durante a sua existência teve uma série de grandes e graves inundações. Tal levou os governantes da dinastia Ming a construírem um sistema de diques para a proteger, o que teve resultados eficazes. Mas não foi somente a vontade da Natureza que as provocou. Em 1642, encontrando-se há seis meses a cidade cercada por tropas de camponesas revoltados e liderados por Li Zicheng, na esperança de conseguir afastar os sitiantes, o governador Ming de Kaifeng ordenou a destruição das secções dos diques que a resguardavam das cheias do Rio Amarelo. Como resultado, as tumultuosas águas rapidamente avançaram sobre a cidade e perto de um quarto dos 380 mil habitantes morreram. A cidade ficou abandonada e só passados vinte anos foi mandada reconstruir pelo Imperador Kangxi. O Rio Amarelo continuou a ser o grande problema de Kaifeng. Em 1849, a cidade, que fora capital da dinastia Song do Norte, ficou enterrada aproximadamente dez metros. Devido a isso, não existem altas construções pois, há o medo de destruir muitos dos vestígios dessa época. Apenas dois ou três edifícios públicos, como bancos e hospital, sobressaem do casario térreo. Após voltar a passear pela Rua das Livrarias, onde muitos edifícios da dinastia Qing existem e continuam a ser preservados, alguns ainda em madeira com paredes muito ornamentadas e onde se encontram lojas de antiguidades e umas tantas livrarias, deixo o interior da parte muralhada da cidade e sigo para Sudeste, à procura do pagode Po. Perguntando a sua localização, estranho em encontrar muitos habitantes que, apesar de não saberem falar inglês, sabem-no ler; e não são só jovens! Como a cidade foi constantemente destruída pelas inúmeras inundações, raros são os monumentos que sobreviveram, sendo o Pagode Po talvez o único que resta da antiga cidade. O nome do pagode vinha do apelido Po, que muita gente por aqui tinha e encontrava-se este inserido no templo Tianqing. Construído o pagode em 977, no período da dinastia Song do Norte, com uma forma octogonal teve nove andares e a altura de 73 metros. Mas o que venho encontrar é algo muito diferente. O pagode Fan, como aparece referenciado, colapsou no início da dinastia Yuan, talvez devido a mãos humanas. Está reduzido a três andares, encimado por um terraço com um pequeno pináculo, tendo as suas paredes completamente revestidas com tijolos e cada um dos quase nove mil, com uma diferente imagem budista em baixo-relevo. Daí sigo para a estação de comboio, que se encontra próximo.