Manchete SociedadeMarjory Vendramini, directora da Associação Berço da Esperança Filipa Araújo - 23 Nov 2015 São mais de 20 anos a cuidar dos filhos dos outros. Duas décadas de dedicação a crianças com marcas psicológicas e registos de vários tipos de violência. Do Brasil até Macau, a missão tornou-se a causa maior da vida da directora Marjory Como era o cenário de Macau há 22 anos, quando avançou com a ideia de criar esta associação? O que nos fez começar este projecto foi o caso de um bebé abandonado num contentor do lixo, tornado público pelos jornais. Nessa altura, depois de ler a notícia, fiquei motivada em ajudar aquela criança. Entrei em contacto com o Instituto de Acção Social (IAS) e percebi que não existia em Macau nenhum orfanato, nenhuma instituição que cuidasse de crianças os zero aos três. Nada. Levou a criança para sua casa? Sim, durante quatro meses. Foi a primeira família de acolhimento em Macau e esse era o programa que se gostaria de iniciar na altura. A questão é que surgiram mais crianças e – eu e o meu marido – decidimos não ficar mais em casa, porque eu já tinha cinco crianças, mais o meu filho. Depois disso, arrendámos um apartamento pequeno, na Taipa, e ficámos lá como associação de Março de 1994 até ao final de 1996. Mas continuaram a crescer… Sim, muito. Cada vez havia mais crianças. Foi depois de 1996 que o IAS nos doou o primeiro espaço que era na Nova Taipa. Mas as necessidades mantiveram o ritmo, e cresciam cada vez mais, o número de crianças aumentava sempre. O que não é de estranhar porque somos a única associação desta faixa etária em Macau. Mas com o crescimento das crianças a base da vossa associação mudou. Pois, é verdade. No início as crianças eram para ficar temporariamente, a curto prazo. Aos três anos voltavam para a família ou teriam de ser adoptados. Mas esta última opção era uma problemática, porque grande parte destas crianças tinhas as suas famílias, não podiam ser adoptadas. Assim estas crianças tinham de ir para algum lugar, mas não podiam ficar connosco porque só tínhamos licença até aos três. Com esta problemática nas mãos surgiu a ideia de criarmos um novo espaço para as crianças mais velhas. Foi um processo, porque não conseguíamos encontrar o lugar apropriado. Até que um dia recebemos a visita do Carlos Monjardino, presidente da Fundação Oriente, que veio entregar-nos uma prenda de natal que era uma carrinha. Foi um momento de muito emoção e lembro-me de ele me perguntar quais as nossas maiores dificuldades e o que estávamos a precisar. E eu contei-lhe que algumas crianças teriam de sair da nossa tutela porque não tínhamos encontrado um espaço. Quantas crianças tinham nessa altura? Nessa altura estávamos acima daquilo que esperávamos e devíamos. Tínhamos uma licença de 18 crianças mas connosco estavam 26, das quais nove já ultrapassavam os três anos. Foi então que a Fundação Oriente doou o novo espaço? Sim, ele ouviu a história, olhou para mim e disse que tinha um espaço ideal. Ele próprio tinha adoptado 12 crianças e tinha esta intenção de doar o espaço para esta causa, só ainda não tinha encontrado a instituição. Foi assim que aconteceu. Depois de obras, tudo isto em 2000, abrimos aquele espaço para podermos manter as crianças até aos 12 anos, que depois cresceu para os 18. Licença que se mantém até agora. Quantas crianças estão à guarda da associação neste momento? No Berço e na Fonte Esperança, nos dois espaços, temos 72 crianças, 30 com idades entre os zero aos seis, e 42 dos seis até aos 18. Temos lugar até 84 crianças. Imaginava tantos casos de crianças em risco quando quis ficar com aquele bebé em 1993? Não, nunca. No início pensámos em adoptar aquela criança, mas depois começámos a perceber que o problema era bem maior do que aquele que parecia ser. Não era só uma criança, eram muitas. São muitas. Quais são as maiores dificuldades que a associação sente e ultrapassa neste momento? Os dois maiores problemas é a falta de mão-de-obra e os problemas que as crianças têm apresentado, a solução para esses problemas. São questões emocionais, psíquicas. Mas existem profissionais especializados para o tratamento destas crianças? Temos uma psicóloga. Uma apenas. Vem de Hong Kong, porque Macau não tem este tipo de profissionais preparados para lidar com estas questões. Tem uma psicóloga no hospital, que é muito profissional, mas é só uma, e está cheia de trabalho. Já nos ajuda no que pode. De forma particular vem então a psicóloga de Hong Kong, mas só uma vez por semana. Temos também assistentes sociais que têm de trabalhar nesta parte, mas claro não é suficiente. Há aqui uma grande questão de preparação também, que é o facto dos profissionais recém-formados não estarem preparados para esta realidade, nem sabem o que significa este trabalho. O recrutamento é difícil? Muito difícil. Não há muitas pessoas que queiram trabalhar aqui. Devido ao horário de trabalho, aos problemas que se encontram. A própria estrutura do trabalho, não é fácil trabalhar com crianças. É preciso um perfil especial, não é qualquer pessoa que consegue. É difícil de encontrar alguém em Macau. Também pelas ambições que cada profissional tem para si. Se pudéssemos gostaríamos, por exemplo, de ter professores para trabalhar com as crianças, mas é difícil, não conseguimos encontrar ninguém. E os voluntários? Sim temos, o trabalho voluntário e de grande importância, pois fazem o trabalho de coração. Há várias pessoas que nos ajudam como por exemplo: cabeleleiros profissionais, que uma vez por mês vêm ao nosso lar e cortam o cabelo às crianças. Também a escolinha de futebol do Benfica que dá aulas as crianças gratuitamente, sem falar em várias senhoras do clube International de senhoras de Macau que vêm ao nosso lar para passear e fazer atitvidades com os bebés. Assim como muitos advogados que nos dão assistência profissional, sem cobrar qualquer honorário. Até pelo ambiente… Exactamente, estar numa instituição não é o ambiente ideal. O ideal seria estar em família, se estivessem bem, claro. São os problemas que as fazem estar aqui, mas uma instituição nunca é o lugar ideal para uma criança. Até pelas coisas pequenas, por exemplo a mudança dos pessoal trabalhador, isso cria instabilidade emocional para a criança, em termos de segurança e confiança. Ferramentas muito necessárias para que as crianças consigam criar uma ligação, e só assim é que é possível trabalhar com elas. Não pode haver medo. Sentimento comum na educação chinesa… Sim, mas aqui não permito isso. O pessoal aqui não pode trabalhar com a regra de impor o medo, aqui não há esse tipo de trato. Fazemos muito treino e formação nessa área. Como é que acompanha 72 casos tão delicados? Eu tento acompanhar. Faço metade do meu tempo nos dois espaços, no Berço e na Fonte, e vou-me metendo a par de cada caso. É importante referir que estas crianças não estão para adoptar. Sim, estas não. É errado pensar que estas crianças estão para processo de adopção. Não. Elas foram retiradas ou entregues pelas famílias que não conseguem educá-las. Estão aqui num regime provisório, que às vezes acaba por ser até aos 18 anos. A designação correcta para a nossa associação é Lar Residencial. Há 22 anos a acompanhar estas vidas, são muitas os momentos intensos vividos… Tantos. Este ano é um ano desses. Cinco crianças que nos foram entregues ainda em fase bebé fizeram agora 18 anos e, claro, tiveram de seguir sua vida. É muito difícil, muito. Pelo menos três delas já cá estavam com menos de três anos. Por mais que tentes ser profissional não consegues: são filhos, são pessoas, são da casa. A saída destas cinco crianças, principalmente estas três, fazem-me olhar para trás e pensar que se calhar até fizemos um bom trabalho. Mas continuam a acompanhar estes jovens? Claro. Quero ver como é que estas crianças seguem. Estas não foram as primeira a ir embora, já tivemos crianças que voltaram para casa mais cedo, para as suas famílias. E comparando os casos, quais as conclusões? Se comparamos as crianças que fizeram os 18 anos aqui com as crianças que saíram antes, posso dizer que as primeiras estão num caminho muito melhor. A maioria, não são todas. Estas que fizeram todo o seu percurso aqui vejo que têm o seu futuro planeado. Dos cinco, uma voltou para casa, outra está na China, a estudar na Universidade, outros dois estão a estudar também em Taiwan e uma está em Macau. Esta última tem sido um presente para todos nós. Foi uma criança que conseguiu uma bolsa de estudo, é muito aplicada e estudiosa. E todos os restantes estão a ser bons alunos. Essa é a maior recompensa para a associação… Sim. O que mais queremos é quebrar o ciclo de miséria, de pobreza, de violência. Todos este valores se envolvem uns com os outros, parecem sempre todos encaixados uns nos outros. A negligência, com a miséria, com a pobreza, com a doença, vício. Estas são sempre as raízes. Uma coisa atrai a outra. Por receber crianças tão novas é mais fácil de trabalhar? Pois, o número de casos de crianças com estes problemas é menor, porque são mesmo muito pequeninas. Mas em 2007, 2008 começamos a receber crianças mais velhas e este tipo de criança viu coisas, passaram por coisas. Violência, foram maltratadas, passaram fome. Há bem pouco tempo uma das crianças olhou para mim e disse “não tinha o que comer”. Não tinha água, não tinha banho, não tinha onde dormir. Como é que uma criança supera isso? É muito difícil uma criança transmitir estas ideias e as situações pelas quais passou. É preciso ser feito um trabalho muito, muito mesmo, profundo, para que ela consiga começar a falar. É muito raro uma criança conseguir falar, o que denúncia os seus traumas é o comportamento. Na escola, a agressividade, a atitude deles para com as outras crianças. Nos mais velhos é difícil. Qual é o papel da família depois da criança ser entregue à vossa associação? Há um procedimento, mas, claro, cada caso é um caso. Quando a criança chega, a família pode visitar, mas isto só acontece depois de um período de tempo. Normalmente seis meses. Nos primeiros meses a família só pode visitar com o acompanhamento de um assistente social e dependendo da atitude da criança com os pais, eles podem começar a ir à rua. Mas tudo depende da reacção. Depois se acharmos que está tudo bem, eles começam a visitar sem acompanhamento do profissional. Enquanto isto, nós, associação, vamos fazendo e estudando as reacções das crianças. Se gostam, se estão confortáveis. No final de seis meses talvez a criança possa ir para casa, se a família estiver em condições. E aí são feitas visitas às casas. É muito difícil tomar esta decisão, porque são os pais e eles têm os direitos, mas a associação quer garantir a segurança da criança. Como se sente depois de 22 anos desta missão? Não consigo avaliar, não tenho muito tempo para pensar nisso. Mas é um trabalho pesado, tem sido. Porque são muitas necessidades e o meu trabalho é muito exigente. Já por mim eu preciso de contacto com as pessoas para perceber e ser profissional. E depois há todo o trabalho de gestão e liderança. Para o ano seremos 63 profissionais. É muita coisa para gerir, muita responsabilidade e nós queremos fazer tudo muito bem, claro. Tem sido superexigente. Vai escrever um livro? Sim, nos próximos três ou quatro anos. Quero acompanhar aquelas cinco crianças que referi. São 15 anos com aquelas crianças e perceber a nossa missão. É um livro sobre todo o meu trabalho. Uma das minhas paixões é transmitir aquilo que tenho feito para outras pessoas. Tenho feito várias formações na China, Malásia e Tailândia. Sempre que dou palestras, por exemplo, o feedback é sempre muito bom. Partilhar faz-nos perceber que não estamos sozinhos, que passamos todos por situações muito parecidas ou até iguais.