VozesO príncipe Sérgio de Almeida Correia - 8 Out 2015 “Meu Deus, como a sua presença eleva o nível da conversa!”, disse-me Swann como que para se desculpar diante de Bergotte, ele que no meio dos Guermantes adquirira o hábito de receber os grandes artistas como bons amigos a quem se procura apenas dar a comer os pratos de que gostam, jogar os jogos ou, no campo, praticar os desportos que lhes agradam. (…) Eu dissera-lhe tudo o que sentia com uma liberdade que me surpreendera (…). Do mesmo modo que os padres, que têm a maior experiência do coração, podem melhor perdoar os pecados que não cometem, também o génio, que tem a maior experiência da inteligência, pode compreender melhor as ideias mais opostas às que constituem o fundo das suas próprias obras.” – Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, Volume II, À Sombra das Raparigas em Flor [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]onheci-o em Novembro de 1986, num jantar em casa de um companheiro da juventude de meu pai. Eu chegara à cidade no dia anterior. Tinha vinte e quatro anos. Quando me conheceu perguntou-me o que fazia. Tímido, acabado de aterrar, lá lhe respondi, com a deferência devida para com quem é simpático, agradável, e nos recebe em terra estranha fazendo jus a um sorriso largo e bondoso sem nos conhecer de lado nenhum. Como se me conhecesse há uma eternidade. Disse-me para no dia seguinte ir ter com ele, ou quando quisesse, para tomarmos um café, ele estaria por lá. Lá era o Banco Nacional Ultramarino, em Macau. E ele era uma estrela. Ele era o Brás Gomes. Frequentara a Escola Naval, de onde não saiu almirante, mas como em todos os locais por onde passava deixou um rasto de amigos, de companheiros, de conhecidos e desconhecidos que o admiravam. Pela simplicidade, pelo trato, pela educação. Com amigos comuns no ramo naval, nesse tempo voltámos a ver-nos várias vezes, nas mais diversas circunstâncias, em reuniões de amigos e em cerimónias oficiais. Sempre jovial, sempre bem disposto, uma referência onde quer que estivesse. Amante das coisas boas da vida, gostava de estar com os seus amigos, de um bom convívio, de uma boa gargalhada, de uma refeição generosa ou de um vinho de excepção, transportava consigo toda a herança de um império. Da Índia aos pântanos da Guiné-Bissau, por onde andou no tempo da outra senhora. Tinha histórias e recordações de todo o lado, que relatava com prazer enquanto puxava do seu Lancero ou do seu Churchill. Quando Carlos Móia, de quem era amigo, chegou à vice-presidência do Benfica, conseguiu convencê-lo a trazer a equipa de futebol a Macau. Então treinada pelo grande capitão, Mário Wilson, tive o prazer de com ele ver, num épico final de tarde, o Benfica golear (8-0) a jovem e inexperiente Selecção de Macau. O José Manuel Brás Gomes era a porta para tudo. Pelo BNU, em Macau, passou muita gente, muitos directores, mas ali Portugal tinha sempre um rosto e um nome: o dele. Certamente que haverá pelas pátrias desse mundo outros parecidos com o José Manuel. Duvido é que haja algum igual. E nem sei se Portugal, algum dia, depois de ficar sem império, voltará a ter outro assim. Conhecia meio-mundo, e não precisava de conhecer a outra metade porque, em contrapartida, todo o mundo o conhecia. Não havia quem chegasse de Portugal, da China, do Brasil ou dos Estados Unidos, sem nunca ter posto os pés em Macau, que não trouxesse um cartão, uma carta, uma recomendação ou o número de telefone dele. Para simplesmente falar com ele, levar-lhe um abraço de alguém, encontrar um parceiro de negócios ou ser aconselhado sobre um bom restaurante. O número de negócios que proporcionou entre portugueses, chineses, macaenses e até alguns marcianos que lhe apareceram à frente é incontável. E a muitos ajudou a construírem fortunas. Não havia vez alguma que o encontrasse que não tivesse um sorriso, uma palavra amiga, um abraço para oferecer. Até quando o Benfica perdia. Um dia, depois de alguns anos infindáveis e miseráveis, disse-lhe que se quisesse ser candidato eu apoiá-lo-ia para a presidência. Há tempos repeti-o entre amigos. Ele sorria, ria-se, piscava-me o olho e arrancava mais uma fumaça. Apaixonado pelo ténis e pelo golfe, que praticava com assiduidade, recordo-me de com ele ter acompanhado o primeiro Open de Macau a contar para o circuito internacional. Corria mundo para jogar golfe. Um dia encontrei-o em Guam com a sua inseparável companheira, sua mulher, onde tinha ido experimentar os novos campos. Recordo-me, também, de uma manhã ter ido ter com ele ao banco, tendo ele acabado de chegar de férias. Perguntei-lhe onde tinha estado dessa vez. O olhar cintilante e um sorriso ainda mais largo abriram-se para me dizer duas palavras mágicas: St. Andrews! “Mas estava frio”, acrescentou logo a seguir. Não sei ao certo quantos governadores de Macau passaram por ele. Não sei quantos lhe ficaram a dever favores, muitos, atenções, gentileza, simpatia, boa educação. Nunca cobrou nada a ninguém. Nem aos chatos. E fazia questão que fosse mesmo assim. Era um tipo de uma seriedade à prova de bala. Podia ter saído do BNU e ter tido todas as “avenças” que quisesse, só que a sua liberdade, o seu espírito livre e rebelde, a sua honradez e o seu carácter nunca o permitiram. O José Manuel Brás Gomes podia ter sido Governador de Macau. E teria sido, seguramente, o melhor Governador de Macau. Porque o José Manuel Brás Gomes era acima de tudo um construtor de pontes, de estruturas sólidas e duradouras, que ainda por cima sabia conservar com elegância. De vez em quando contava histórias do fim do mundo, fazia-nos rir a bom rir. E, todavia, nunca ninguém lhe ouviu uma inconfidência ou soube da boca dele o que não pudesse ser conhecido. Sabia histórias de reis e de rainhas, de ricos e de pelintras simpáticos, do Spínola, de comandos e de fuzileiros, porque teve de lá andar com eles, e também de sacanas da pior espécie e de filhos da puta, que ele também conheceu alguns e distinguia-os à légua. Sabia os nomes deles todos. E gostava tanto de esquerdistas, comunistas ou de socialistas, entre os quais sabia que eu me incluía, como gostava de sportinguistas. Porém, duvido que algum tivesse deixado de ser seu amigo ou de lhe dar um abraço por essa razão. O José Manuel era franco, leal, directo, um modelo de cavalheiro. Um senhor. Ultimamente tive o privilégio de estar com ele com mais frequência. Estava com mais disponibilidade, fosse no Clube Militar, do qual era membro da direcção, ou noutro lado qualquer. Encontrava-o regularmente às sextas-feiras, nas reuniões do nosso “Comité Central”. Nos últimos tempos não apareceu. Não podia. Falei com ele ao telefone, há duas semanas, como muitas vezes fazemos com os “camaradas” ausentes sempre que nos reunimos. Não sabia quando regressaria. Avisei-o de que iria ver os jogos com o Galatasaray e o Boavista. Confidenciou-me que ainda estaria por Lisboa nessa altura. Disse-me para lhe ligar quando chegasse, para irmos almoçar. Já não chegarei a tempo. O príncipe, o José Manuel Brás Gomes, foi-se hoje embora. Vamos todos sentir a sua falta. A esta hora estará a cear noutras paragens, construindo novas pontes. Ou a acender um charuto entre amigos. Rindo a bom rir, espalhando classe, educação e muita liberdade. Era o que melhor sabia fazer. Portugal, mais do que a muitos outros, fica a dever-lhe o fim honroso do império. Sozinho ele valia por um exército.