Que sociedade é esta?

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]cartaz pode ser encontrado numa paragem de autocarro qualquer da cidade. Nele pode ler-se, em chinês tradicional, português e inglês: “Cumprimente verbalmente ou com gestos quando encontrar alguém conhecido” e “Agradeça quando lhe for prestada alguma atenção ou ajuda”. Duas frases em que a polémica está ausente e com as quais todos estaremos de acordo. Certo?
O cartaz tem a chancela do Instituto de Assuntos Cívicos e Municipais (IACM) do Governo da Região Administrativa Especial de Macau. É um cartaz, entre outros, de uma campanha de educação cívica, que inclui mensagens como pedir às pessoas que ensinem aos seus cães a fazer “as necessidades em casa no sítio certo”. Sublinho o “em casa”.  
A minha experiência profissional tem-me levado a países em que abundam este tipo de mensagens, de campanhas destinadas a contribuir para alterar comportamentos sociais, associados, normalmente, a riscos de saúde. Ao lado da destruição da guerra civil, em Bangui, na capital da Republica Centro-Africana, ainda é possível encontrar hoje em dia mensagens que exortam os cidadãos a praticar sexo seguro, usando sempre o preservativo, ou que apelam a que as pessoas durmam debaixo de um mosquiteiro, de forma a prevenirem a malária. Ou então mensagens de educação política; em que se deixa claro, a possíveis eleitores, que o voto é secreto e que não devem deixar “vender” o seu por uma qualquer saca de arroz.   
O problema com o “nosso” cartaz, que nos exorta a cumprimentar as pessoas que conhecemos, não é a mensagem que ele transmite, um comportamento social tido por adequado em várias culturas. Estes comportamentos são inculcados nas crianças, até à exaustão, desde bem pequenas quando lhes é dito, por exemplo, dá aqui um beijinho a esta senhora, prima, vizinha ou outra coisa qualquer. Cumprimenta. Sorri! O problema deste cartaz é tudo aquilo que ele engloba, o quadro mais vasto que não cabe no escaparate da paragem de autocarro. É tudo o que está à sua volta. “The big picture” diria um anglófono.   
O problema deste cartaz é que nos leva a pensar: que sociedade é esta, a de Macau, em 2015? Poderia ser a de Macau ou outra, porque noutras culturas e noutras latitudes talvez não seja assim tão diferente. Mas é, de facto, sobre Macau que estamos a falar. É aqui que está o cartaz e é esta sociedade que impele pessoal dirigente, com capacidade de decidir estratégias de educação cívica, a incluir na sua campanha, em que são usados outros meios como a rádio ou a internet, uma coisa tão simples quanto “cumprimente quem conhece”! Dito de outra forma, este cartaz interroga-nos: o que somos quando dizemos cumprimente quem conhece?
A actual vida em sociedade tem levado a um cada vez maior distanciamento em relação ao contacto pessoal directo, físico, não intermediado por uma qualquer plataforma de comunicação. Embora comuniquemos cada vez mais, fazemo-lo à distância. Temos todos os “amigos” disponíveis na ponta de um clique ou de um “sent”, seja no Viber, no Messenger, no Wechat, no Whatsapp, o que se quiser. Mesmo aí não cumprimentamos o nosso interlocutor. Vamos logo directos ao assunto: já viste isto? Já leste isto? Fiz isto!
Conseguimos cada vez mais estar a par de tudo o que se passa – há cada vez mais pessoas a aprenderem o que acontece no mundo pelo que os “amigos” colocam online, do que por estarem a ver a BBC, a CNN ou a Al-Jazeera, ou por irem aos seus websites. Este homo telecomunicantes não vive bem com o contacto pessoal, frente a frente. À mesa, com os amigos (sem aspas), enquanto engolimos o jantar, temos o nosso telefone à frente; em vez de falarmos, de partilharmos as últimas com aqueles que ali estão, estamos a comentar o novo corte de cabelo do A ou a ver o vídeo que se tornou viral de um homem que caiu na rua sem que ninguém o ajudasse a levantar. Em grupo, em vez de pedirmos a alguém para nos tirar uma fotografia, esticamos o braço, ajeitamos o cabelo, sorrimos, e cá vai selfie.
É por isso que o aluno deixou de cumprimentar o professor na sala de aula. E o professor deixou de olhar para o aluno, usando o microfone para se fazer ouvir, de olhos postos no powerpoint que exibe no ecrã ou no chão. É só ir à aula e ver o que se passa.
No escritório, deixámos de pedir ao nosso colega sentado na sala ao lado para nos fazer isto ou aquilo em pessoa. Enviamos-lhe uma mensagem electrónica e já não partilhamos com ele o que nos está a acontecer na nossa vida. E muitas das vezes não escrevemos por favor.  
Quando entramos no autocarro, ocupamos, primeiro, o lugar da coxia na esperança que ninguém se sente ao nosso lado, no lugar da janela. Assim, talvez não nos incomodem e sigamos a viagem toda sozinhos. Vamos a ouvir música no telefone, com os nossos auscultadores, e a jogar Candy Crush, para o qual já convidámos todos os nossos “amigos” no Facebook. Segundo um estudo recente sobre o uso dos diferentes media, passamos em média 11 horas por dia ligados a plataformas de comunicação, entre as quais a internet, telefone, rádio ou televisão. Outros tipos de estudos, ainda numa fase embrionária, mostram que, em termos de afecto e de satisfação, conseguimos tirar o mesmo tipo de prazer e de consolo destas relações intermediadas. É por isso que o cibersexo foi alcandorado a estratégia para combater o perigo de contágio de doenças sexualmente transmissíveis.   
Precisamos pois que nos lembrem que devemos cumprimentar quem conhecemos. Como os nossos pais nos haviam ensinado quando éramos pequenos, mas que entretanto esquecemos. Há um certo hedonismo exacerbado, notório na ostentação dos nossos pequenos prazeres – o novo telefone, o novo tablet, o novo carro, a nova mala Louis Vuitton – aos quais podemos aceder sem ter de cumprimentar o vizinho quando o encontramos. Vizinho? Conheço eu o meu vizinho? Sei o que faz, de onde veio, quantos filhos tem? Não sei. Nem sei se seria capaz de o reconhecer na rua; afinal, quando passo à sua porta de manhã, já tenho os olhos postos no ecrã do meu telefone.  
Somos uma sociedade asséptica, focada em nós próprios e nos nossos pequenos prazeres quotidianos. Tenho dúvidas que isto se “corrija” com cartazes e campanhas na rua. Parece-me que será preciso mais.

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