de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasCem mil anos. Quase Anabela Canas - 19 Jul 2015 [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]ento-me na varanda ampla, com um cigarro. Consolo breve e repetido. E penso nos cem mil anos que passaram desde que amei aquele homem. Pela primeira vez. Que um dia chegou terrível e partiu a minha vida em duas, antes e depois. Dor e esquecimento. E em cada um desses lugares – porque o são – eu. Metade de mim. E só quando no esquecimento se dilui a consciência de que o é, algo se reconstrói. Penso se valeu a pena querer morrer. Penso se valeu a pena esquecer para depois voltar a amar com o mesmo desespero. Porque o desespero tem um rosto particular para cada amor. Digo, para cada pessoa. Sou eu que sou desistente, ou, pelo contrário, uma amante que assume repetidamente o fardo doce de amar a sós…para depois percorrer o caminho de retorno à solidão a sós. Cem mil anos sem conseguir amar para sempre, esquecer para sempre, nem morrer como tal. Vem-me à memória o poema de Poe: “From childhood’s hour I have not been As others were; I have not seen As others saw; I could not bring From the same source I have not taken My sorrow; I could not awaken My heart to joy at the same tone; And all I loved, I loved alone.” E dele, a dizer, só que chegou e partiu bem antes. Envolto na suas trevas. Sento-me olhando a praça velha, a torre do relógio, e espero. Ele viria às seis. Disse. Mas às quatro já eu comecei a ser infeliz. Porque a minha espera sabe-se em vão. Olho para baixo demasiadas vezes para a descrença que tenho de o ver surgir de uma das esquinas. E eu sei que terei que esperar a lentidão do avanço perverso do tempo, para às seis começar a confirmar essa certeza incrédula. E só lá para as dez conseguirei deixar de esperar. Nesta, como em outras alturas da vida, seria melhor parar o relógio, e fingir que nada se sucede a nada. E ser, quanto muito apanhada dramaticamente no inesperado. E de cada vez que me debruço da varanda, sinto-me como Nástienca de Noites Brancas, inclinada da ponte sobre o Neva, a ser quanto muito encontrada pelo Sonhador. Lembro-me então que há muito não consulto o Livro de Areia, não me debruço sobre o acaso que é a alma desse pequeno oráculo que surgiu como tal, não sei se pelo meu fascínio pelas demandas, que parecem estabelecer linhas de um destino que não controlo e está traçado, se pelo desespero de respostas siderais ao meu vazio de orientação. A mala negra de viagem, jaz de entranhas em desalinho desde o primeiro dia, no sítio em que foi poisada. E dela extraio o pequeno livrinho de capa negra de cartolina mate, e folhas finas de um azul triste. E deslavado nas pontas, por efeito da luz. Amarelado, melhor dizendo. Concentro-me como sempre no amor que tenho a esse pequeno livro de um grande escritor. Abarco-o com as mãos quase enclavinhadas de expectativa, como sempre. Lembro que das últimas vezes que o fiz, e repetidamente, abri o livro das respostas, de olhos fechados como é do meu ritual, e apontei um dedo às cegas. Inacreditavelmente o meu dedo apontava um ponto cego numa página azul e vazia entre capítulos. Fazia o sentido que fazia. Reafirmado e confirmado. Nada a fazer. Hoje, o mesmo procedimento, e o oráculo foi firme na resposta: “Chamo-lhe Utopia”. Lendo o resto da frase: “voz grega que significa não existe um tal lugar”. Com assinatura: Quevedo. É mais uma vez uma página de início de capítulo. E este aparece um pouco acima daquele ponto preciso em que apontei o dedo com a força, já o disse, do desespero. E a este cabe o título: “Utopia de um homem que está cansado”. Borges nunca me falha na emoção de nele me encontrar. Na realidade há muitos anos que o leio assim. De forma errática. Falta-me o tempo. Aquele tempo de que ele me fala ao coração. A mistura dos tempos. E há um sabor particular nesta forma de abordar o texto, baralhando uma ordem que, sendo inevitável, em Borges parece apelar à subversão. A essa mecânica do olhar sem ordem pré-estabelecida, que se prende tanto com a sua explicação do tempo. A tarde fez-se noite entretanto, prolongada até ao limite que a melancolia devida àquele dia, permitiu. E de súbito, como um animal instintivo sem razão, levantei-me sem saber porquê naquele exacto instante e não antes ou ligeiramente depois, e entrei. Naquele quarto de hotel no centro de Praga, amplo, confortável, no seu requinte retro e no seu desgaste. Dependendo da luz e do olhar, mas sobretudo do fio de pensamento imediatamente anterior, propício a enlevar o espírito a um estar melancólico, decadente e nostálgico, ou a tombar sem apelo num completo desalento. A pensar no que não foi, que sendo para não ser, apesar de tudo determinou a específica tonalidade deste início de noite. Que não teve contudo a qualidade de ser perda. Porque, “Mesmo que os anos da (…) vida fossem três mil ou dez vezes três mil, (…) ninguém perde outra vida senão a que vive agora nem vive outra senão a que perde. O termo mais longo e o mais breve portanto são iguais; morrer é perder o presente, que é um lapso de tempo brevíssimo. Ninguém perde o passado nem o futuro, pois a ninguém podem tirar o que ele não tem. (…) todas as coisas giram e voltam a girar pelas mesmas órbitas” (Marco Aurélio). Passo pela mesa baixa logo imediatamente em frente à janela, e apalpo um fruto da taça decorativa – incrível como os frutos têm também esse pendor de adorno – um pêssego enorme e aveludado como era de esperar. O aroma intenso e inimitável, excepto talvez na tonalidade de uma pele, a remeter para a memória do perfume, que me lembra de súbito qualquer coisa para lá do alcançável, provavelmente na infância. E coloco-o de novo mansamente na taça. Sem apetite, por agora. O olhar sem se prender a nada, faz-me girar como em torno de um eixo, de forma algo automática e sem ânimo, e retomar a moldura da janela. Pensar naquele meu amor. E naquele meu amado, o que não é a mesma coisa. Aquele amor que, disse-o Borges na voz de Quevedo, é a utopia. Muitas emoções a somar, no mesmo dia em que visito Kafka no cemitério. Um pouco depois deito-me sobre a cama e quero morrer, mas simplesmente adormeço. Até aqui, ele o adjectivou, sem querer. Acordo lentamente como vinda de um lugar longínquo, e, desentranhada à força, retorno ao embalo agradavelmente preenchido pelo ruído do comboio em andamento. (E, do registo imaginado de duas vidas, vagamente contidas sua representação em duas páginas, que se deixam engolir pela ficção de duas linhas finais, chego ao ponto de onde parti). Aqui houve noite. Amanheceu.