VozesPedaços do passado António Conceição Júnior - 15 Jul 2015 [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Tempo é Espaço onde a Memória reside, onde flui e se vivifica, ressurgindo como viagem dimensional para retomar o fio da meada, à maneira de Teseu. Esse Tempo que tudo leva ou traz é, em si, o novelo que transporta o passado e com ele uma parte pequena do que era Macau: O Hotel Riviera ficava na Rua da Praia Grande. Grandes arcos de volta perfeita, ornados de janelas em madeira escura, rematavam o rés-do-chão da fachada. Os dois pisos superiores tinham aprazíveis varandas que repetiam os mesmos arcos. A porta principal giratória dava para o salão de jantar, de sobrado escuro, onde, num palco à esquerda, uma orquestra tocava nas matinées dançantes. O ambiente era sombrio, apropriado a combater a canícula do verão. Silenciosas ventoinhas giravam no tecto. A área sob as varandas dos andares superiores era o lugar de eleição de tertúlias, que ali faziam os seus convívios frente à placidez da pacata Praia Grande e do aterro ainda parcamente povoado. Ao lado, entre o edifício do Tribunal e o Riviera, ficava uma simpática vivenda, sede da Sociedade de Abastecimento de Águas de Macau, propriedade de Pedro José Lobo. Saindo pela porta lateral do Hotel Riviera, onde um balcão vendia famosos pães-de-leite, abria-se ao passeante o início da Avenida de Almeida Ribeiro e, defronte, o ainda sólido edifício do Banco Nacional Ultramarino. Mais adiante, na esquina da Rua Central, um polícia mouro, turbante verde rubro com franjas da mesma cor, estrela de seis pontas no centro da atadura da cabeça e barba negra colhida numa rede, desenhava uma figura imponente que causava algum temor. No quarteirão seguinte, antes de se chegar ao edifício do Leal Senado, uma porta dava acesso a um salão de bilhar no primeiro andar, funcionando no rés-do-chão o Café Ruby, onde a juventude se reunia, e que se distinguia pela coluna com um dragão de olhos acesos. Depois ficava a loja do senhor Lemos e uma outra do Paquistanês “Moosa & Cia.”. Pintada de cor creme, em estilo Art Deco, a Tabacaria Filipina oferecia cigarros, cigarrilhas, charutos, tabaco para cachimbo e toda a parafernália necessária. Seguia-se-lhe uma pequena banca, onde um homem baixo, de cabelo à escovinha, vendia cigarros, bebidas, pastilhas elásticas e tudo o que se desejasse para uma tarde no cinema Apollo. Do outro lado da rua, no edifício dos Correios, viam-se pessoas nas janelas, recorrendo a umas maquinetas rolantes para dispensar goma-arábica para os selos das cartas, portadoras de saudades e notícias. O edifício do Leal Senado, virado para o Largo onde a estátua do Coronel Mesquita ameaçava sacar da espada, com portas secundárias na fachada, permitia, a quem por lá passava, discernir, por uma, um posto de enfermagem e sua maca de grandes rodas, e, pela outra, um ar sombrio que o calor apertava e os fiscais revezavam-se a sorver a frescura do piso de granito. O Long Kei como que acenava das arcadas do edifício no Largo Senado, chamando as gentes a saborear a cozinha cantonense. Outros, mais devotos à comida macaense, subiam a calçada do Tronco Velho para irem almoçar ao Clube de Macau, mesmo defronte à Igreja de Sto. Agostinho. [quote_box_left]Não se trata de um antagonismo ao verdadeiro desenvolvimento. Trata-se, isso sim, do desejo que o desenvolvimento seja autêntico e em todas as frentes, preservando a identidade deste lugar e a sua história patrimonial, cuja existência futura depende inteiramente do que hoje se decidir[/quote_box_left] A Pharmácia Popular, ao lado da Misericórdia, ali estava, o toldo abrigando dos raios solares. Os armários claros, com frascos de todos os tamanhos, ocupavam grande parte do espaço, competindo com uma belíssima caixa registadora, atrás da qual se sentava o senhor Ventura, homem de grande porte. No meio do silêncio, uma balança com pesos de correr constituía a maior atracção dos que lá entravam. Mais próximo da igreja de S. Domingos, debaixo das arcadas, um carpinteiro talhava, na madeira de uma arca, histórias de guerra da velha China, trabalhos então muito procurados pelos militares. Bem próximo estava a Po Man Lau, simultaneamente Livraria, Tipografia, Papelaria e Venda de produtos fotográficos. De quando em vez, um autocarro, corpo pintado de rubro e tejadilho creme, passava pela Almeida Ribeiro e pelo Largo do Senado. Era escasso, escassíssimo, o trânsito no tempo do Hotel Riviera. Muito do aqui narrado já não existe. Esfumou-se na voragem do tempo e da progressiva transformação da cidade. O Largo do Senado, cuja identidade o actual governo protege, era o paradigma de uma praça portuguesa, como se pode ainda sentir no pavimento de calçada. Contudo, muito do comércio tradicional desapareceu, como a leitaria e outras lojas que davam ao largo um carácter próprio. Importa que este ressurja, porquanto também é parte do legado patrimonial, simultaneamente tangível e intangível. Fazem falta esplanadas a assumir a pedonização. Faz falta espaço a este espaço, para que respire no seu conjunto. Faz falta que certas actividades lúdicas sejam desviadas para outros lugares e deixem este núcleo do Centro Histórico, património que agora celebra o seu 10.o aniversário de classificação pela UNESCO, ser usufruído na sua inteireza. Como dizia Fernando Pessoa, a Memória é a Consciência inserida no Tempo. Não se trata de um antagonismo ao verdadeiro desenvolvimento. Trata-se, isso sim, do desejo que o desenvolvimento seja autêntico e em todas as frentes, preservando a identidade deste lugar e a sua história patrimonial, cuja existência futura depende inteiramente do que hoje se decidir.