Ancestral génese e espírito da China

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uando em Macau, na Casa Lou Kau encontramos o artesão chinês natural de Huaiyang, Sr. Xu Shuzhang, a pintar figuras estilizadas de barro, logo veio à memória as rústicas pequenas esculturas, que adquiri há vinte anos em frente ao Templo mausoléu de Tai Hao, dessa mesma cidade da província de Henan. Em Huaiyang, considerada a primeira cidade do mundo, celebrava-se então o aniversário de Fu Xi, cujo nome como divindade é Tai Hao. A feira, que ocupa toda a área entre o templo, o Rio Cai e o lago, é uma das mais antigas realizadas na China e foi aí que as comprei a um agricultor, habitante nas redondezas que andava com um cesto cheio dessas pequenas esculturas. São trabalhos com características de uma pureza infantil, de figuras com formas amórficas muito diversas, que logo nos transportaram para uma mitológica história registada há mais de dois mil anos.
Nu Wa, após o dilúvio e separada do seu irmão e companheiro Fu Xi, solitariamente vagueava pelo mundo onde não havia viva alma, já que todos os outros seres humanos tinham perecido, afogados nas turbulentas águas que subitamente tinham inundado a Terra. Quando tudo voltou ao normal, Nu Wa vagueava na esperança de encontrar alguém, mas apenas se deparava com uma imensa desolação. Sentindo-se muito só, ao ver-se reflectida nas águas do rio, pegou num bocado de lama e começou a moldá-la à sua imagem. Pousando-a, esta figura adquiriu vida e contente com a sua criação, continuou a modelar mais e mais criaturas. Resolveu assim povoar o mundo, mas percebeu que a sua tarefa era imensa e nunca mais terminaria. Então, decidida a usar os seus poderes sobrenaturais, pegou num ramo de vime e passando-o pela lama fê-lo girar no ar e os salpicos ao tocar o chão transformaram-se em novos seres humanos. Percebendo o efémero das suas criações resolveu dividi-los entre homens e mulheres e assim, com um aparelho reprodutivo, puderam estes perpetuar a espécie humana e daí surgiu de novo a humanidade.
Na feira, que para além do lado comercial tem uma parte de diversão, encontramos ainda os famosos tigres (ou seriam cães?) feitos pelos aldeãos com um tecido cor de laranja e ornamentados com pinturas. Pareciam uma produção actualizada com um novo desenho escultural, quando comparados com os pequenos objectos feitos de barro e pintados com fundo preto, de onde sobressaíam as cores vivas que lhes davam as feições. Entre a multidão, poucos eram já os camponeses, com cestas cheias, a vender estas pequenas esculturas e para chamar a atenção, iam com eles na boca usando-os como apitos. São os ‘Cães do Mausoléu’, que por terem formas amórficas muito diversas, revelam ser provenientes de uma figuração muito antiga.
Os Cães do Mausoléu, ou Cão de Argila, também conhecido por Cão Ling é o nome que em Huaiyang se dá a estas figuras no seu todo, não importa a representação que têm. Está relacionado, segundo o conhecimento popular, com o nome de Fu Xi, em cujo primeiro caractere (伏) existem dois radicais, um de homem (人) e outro de cão (犬). Segundo especulações de alguns estudiosos, a tribo de Fu Xi tinha como totem o cão e após o seu chefe deixar esta vida, os cães tornaram-se as divindades que guardam o mausoléu, que Confúcio passado dois mil anos confirmou estar ali enterrado o corpo do inventor dos trigramas. IMG_2980

Património Imaterial de Henan

Macau recebe a Mostra de Património Cultural Imaterial da Província de Henan entre 13 a 28 de Junho. Visitar esta província, situada na parte média do Huang he, ou Rio Amarelo, é como entrar pelas primeiras páginas do Livro da História da China. Henan, que significa a Sul do Rio, é um dos berços da civilização chinesa, tendo nela vivido ilustres personagens como Fu Xi, o primeiro Ancestral da Civilização Chinesa e Nu Wa, ambos considerados os primeiros seres humanos, o pai e mãe do povo chinês, assim como Sui Renshi, o primeiro a fazer fogo e foi onde nasceu o Imperador Amarelo, Huang Di que, unindo as tribos, criou o povo chinês. Albergou as capitais dos Soberanos Zhuan Xu e Di Ku e das três pré-dinastias chinesas, a Xia, a Shang e a Zhou. Lao Zi, fundador do Daoismo filosófico, aqui viveu tal como Zhuang Zi, Hua Mulan – heroína do tempo da dinastia do Norte (386-581) e tantas outras personagens famosas da História da China.
Com toda esta herança cultural, fundadora de uma das mais brilhantes e ancestrais Civilizações, teve Macau o privilégio de assistir nas Ruínas de S. Paulo, a um espectáculo que ocorreu nos dias 13 e 14 de Junho. Durante uma hora actuaram os Tambores de Kaifeng, uma sessão de Tai Chi Chuan e do Kungfu de Shaolin, não fosse esta a província de origem do boxe Shaolin e do boxe Taichi, dois dos boxes tradicionais chineses representados no Wushu, as Óperas Yu e Qu (Melodia Yu: Quhu, Shuixiu), a Dança Huatiao de Gushi e as dezoito Músicas de Gongos e Tambores. Até ao dia 27 de Junho podem ainda ser vistas na Casa de Lou Kau, durante a manhã, a Arte do Corte de Papel e a Escultura em Argila (Cão em Argila de Huaiyang) e à tarde, as Xilogravuras de Ano Novo de Zhuxianzhen e a Arte das Lanternas de Bianjing. Já durante os dois fins-de-semana em que a mostra se encontra em Macau, a Casa do Mandarim recebe individualmente, em cada um dos dias, os quatro artistas que durante a semana se apresentam na Casa de Lou Kau. Estes são quatro elementos representativos do Património Imaterial da China, sendo as Xilogravuras de Ano Novo de Zhuxianzhen, que tiveram origem na dinastia Song do Norte, o protótipo entre os vários estilos de xilogravura da China. Já as Lanternas Zhang de Bianjing têm sido fabricadas desde as dinastias Sui e Tang, tornando-se muito populares no período Song e estão associadas à boa fortuna. Quanto à arte do corte de papel de Yuxi, que faz uso da cor negra para conferir elegância, “está presente em diversos contextos quotidianos, incluindo em casamentos e comemorações de aniversários, quando se roga por bênçãos e por chuva, ou para evitar forças malignas” como é explicado num painel sobre essas exposições. Por fim, as esculturas em argila denominadas por Cão de Argila de Huaiyang, “abrangem temas variados, caracterizando-se pelas suas formas tradicionais e cariz enigmático. Acredita-se também que estas esculturas serão objectos simbólicos que representam as oferendas feitas em honra dos antepassados humanos e no contexto do culto genital, bem como no âmbito de práticas totémicas. Existem mais de duzentas formas de diversos animais nesta arte escultórica, incluindo macacos com rosto humano, macacos em corpete, bem como Sibuxiang”, escultura que por misturar diferentes figuras não se parece com nenhuma e numa metamorfose cria uma nova figuração, desassombradamente moderna.

O artesão Xu Shuzhang

Na Casa de Lou Kau, encontramos o artesão Xu Shuzhang a pintar as suas figuras de barro, representativas do Cão Ling, que apenas se encontram na cidade de Huaiyang. É reconhecido como o último dos artesãos que trabalham nessas esculturas e por isso, representa Henan nas muitas exposições levadas a cabo por toda a China. E foi durante essas viagens, que percebendo haver pouca procura, tentou inovar e assim, em 2007, apareceu com uma nova figuração, mais atractiva para os actuais tempos. Sendo o único artesão que se encontra no activo a modelar e decorar tais figuras, foi-lhe outorgado em 2010 o título de Património Imaterial da província de Henan. IMG_3016
Xu Shuzhang trabalha no barro desde criança, actividade que a sua família há oito gerações se dedica durante o período de interregno agrícola, ou após a labuta no campo, aproveitando essas horas de lazer para modelar as pequenas esculturas. Essas peças são feitas de argila retirada do que após as cheias do Rio Amarelo ficou depositado por baixo dos seixos. Barro de uma qualidade que não se encontra em mais lado nenhum tem vindo gradualmente a diminuir de quantidade. Após modelado, vão estas pequenas esculturas para um compartimento a fim de secarem, sendo depois revestidas a tinta preta. Em seguida são pintadas com cinco diferentes cores: vermelho, amarelo, branco, azul e verde, mas como afirma, os pigmentos usados antigamente já não se conseguem encontrar e por isso, agora pinta com tinta acrílica.
Sendo actualmente o único artesão no activo a modelar e decorar tais figuras, foi-lhe em 2010 outorgado o título de Património Imaterial da Província de Henan e por isso, tem viajado ao longo da China mostrando a sua arte, como único representante da herança cultural transmitida desde Nu Wa.
Ao apresentar-lhe as esculturas antigas por nós compradas na feira de Huaiyang, os seus olhos brilharam pois confessou não mais existir quem as faça e por isso, são peças museológicas. Confessa que em sua casa tem uma grande variedade delas guardadas, que poderiam servir para criar um museu. Inspiradas no mito de Nu Wa, desde tempos imemoriais os camponeses de Huaiyang modelavam estas figuras, transmitindo nessa primitiva arte, de formas difusas e coloridas com elementos de uma simbologia já quase indecifrável, uma ancestral herança. Pegando numa das esculturas que trazemos, mostra-nos a cabeça, que diz ser de macaco e apontando os três pontos revela estarem estes ligados ao sexo, que a figura representa. Depois explicou as linhas yang e yin que ali estavam pintadas e o tempo rapidamente se escoou no deslindar da simbologia das figuras que trouxéramos de Huaiyang.

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