Cândido

[dropcap style≠‘circle’]V[/dropcap]ivemos agora o instante de Voltaire um pouco de forma inconsciente mas muito próximo da natureza dos factos que lhe deram vida. Nos «Maias» já encontrámos esta personagem, afagada por longas e manifestas rupturas com a manifestação social da sua época, mas a candura era de certa forma um atavismo da opulência de classes sociais que vivendo de forma descontraída nem por isso se sentiram menos enfastiadas, e que no arrabalde a quando das convulsões dos regimes foram descobrindo prazeres novos e simples. Porém, hoje, no gritante estertor do mundo, muitos jovens das sociedades capitalistas experimentam pela primeira vez a derrocada do dogma da sua imperecibilidade e descobrem assim prazeres, também eles novos, e formas de vida para as quais jamais alguém os preparara. Mas também Garrett glosou na sua Joaninha – a dos olhos cândidos – uma pátria que mandava para os autos-de-fé aqueles que lhes apaziguariam os dias do poder das Fúrias. Ora, «Cândido» fora censurado em Portugal dez anos após a sua publicação em 1769 por não ter compreendido bem a necessidade sacrificial de tais práticas e ao ter ficado demonstrado que nem com isso se tivesse impedido um valente tremor de terra.

Mas os Cândidos de hoje não serão exactamente aqueles que na orla dos caprichos fechados das suas cidadelas trepavam pelas paredes acima à procura de situações romanescas para desviar o enfado de séculos, os nossos, são bastante menos “cândidos” são cultos, informados, versáteis e cosmopolitas: têm alucinogénios, viajam, transgridem (não se sabe já bem o quê) têm mais festins, cartões, botões, ladrões ao seu dispor e a natureza tornou-os eclécticos. Só que no meio de tudo isto se levanta agora uma alvorada de mau estar generalizado pois que em matéria de riqueza, o dinheiro, esse, seja nosso, ou de outrem, ou de aqueloutro, é agora bem mais volátil e fora dos abrigos das garantias domésticas, daí, a mudança súbita de atitude face a ele. Os nossos Cândidos surgem-nos despojados, grupais, solidários, vegetarianos, ambientalistas e prestes a fazer desmoronar a já insalubre educação burguesa recebida. Nós, educámo-los para outras coisas e ainda bem equipados nos nossos dogmas e desconhecemos agora tudo desta actual jornada. Penso que não perderam o sentido de humor nem a capacidade para nos alarmarmos perante o resultado que displicentemente fomos fabricando. E isso revela o lado impiedoso e programado das suas aparentes canduras: olharmos os factos por ângulos que nunca pensáramos ver, ampliando para níveis exorbitantes a nossa visão de derrocada.

Mas a Europa de então não via também com bons olhos uma tal obra fruto da desfaçatez do mundo, a mesma que se blinda hoje de “bem-pensantes” e vai escorregando na sua prática quotidiana para começar a não querer saber destas matérias intrusivas. Já lhe basta a alienação a que chegou e certamente a última coisa que não quer escutar é que uma aflição nuclear ou um efeito da tramóia do clima a desfaça em bocados. Não há signos inocentes, e muito menos olhares desassombrados acerca de realidades difíceis, também é certo que nem a sátira é matéria aguentável num mundo onde se encontram já todos os elementos de uma transfiguração brutal. É que o mal existe e ao segregá-lo pode vir a revelar-se bem pior. E também o pessimismo vai crescendo à medida que o herói se dá conta de tantas vidas para além daquelas do interior das suas muralhas. Por ora, estamos atravessando o rescaldo amplo de todas as teorias, estamos a testar que entre a ideia e a situação há matéria para desenvolver muitas outras.

No tempo do nosso herói havia ainda a fantasia de entrar numa Mesquita, talvez em busca do obituário das «Mil e uma Noites»: de que morrem afinal os felizes? E ainda se demoravam na contemplação das raparigas orando, e que os Imãs apenas se encolerizavam por isso, e as consequências da aventura que daí advinha; hoje, os nossos jovens Cândidos apenas sabem que os árabes têm uma religião que os força a eles a ter segurança, sem muito alarido, perante o também estado de terror das forças que os vão protegendo . Não dão importância aos Templos em si, mas, ao que dizem transportar nos casacos o ismaelita invasor. A contemplação da beleza uns dos outros é terra queimada e estranhamente todos capitulam na sua esfera de alienação. – Aos nossos pés dorme uma jiboia que suga impassível uns e outros numa espécie de emboscada olímpica e que insiste em não se mostrar.- Depois da desdita da facilidade, provada, provável, ainda há duas gerações, improvável, dissecam agora as mentes vindouras acerca dos seus destinos tão ameaçados, e se de aventura em aventura um sopro de existência lhes mantém um contínuo movimento, cedo perecerão na vacuidade das voltas restando-lhes apenas um magro e saudável ingrediente: o trabalho. Trabalhar de forma simples, sem grandes sonhos ou perspectivas dado a incerteza das estruturas. E assim começa um ciclo novo levando as mãos e a casa Holística onde cada um já suplantado o instinto territorial, esse atavismo dos velhos sonhadores, começará a nova construção. Cultivar cada um o seu canteiro (onde já vai o Jardim!) da sugestão comum para uma vida possível e simplificar o roteiro do mundo, agora em rede, para não se enlouquecer de vez com a “verdade” de todos.

Enquanto isto, espera-se que a ingenuidade não cubra de vez a velha fábula do Jardim do Éden e saibamos que poderemos ser ainda e novamente expulsos pela razão recentemente demonstrada ; que é a de não virmos mais a ser necessários.

Mas, e efectivamente, «tudo vai bem no melhor dos mundos possíveis» sabe-se lá o quão bem poderíamos estar se tudo se tivesse desenrolado ainda melhor, e do mal que deixámos de suportar por não ter corrido pior?! Do optimismo, resta a esperança que os nossos Cândidos nos desculpem por durante tanto tempo não termos notado tanta coisa! Eles vão desculpar. Somos umas das últimas espécies Humanas ainda herdeiros dos Filhos de Deus. Também nós neste momento não sabemos bem dos nossos próprios caminhos.

5 Mar 2019