António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasViagem e deslocação 2 [dropcap]U[/dropcap]ma aula é um acontecimento musical. Deleuze dizia-o. Não é óbvio, mas uma aula não é uma sala de aula. Não são as peças de mobiliário que lá se encontram: várias filas de cadeiras e secretárias paralelas umas às outras, dispostas de tal maneira que o quadro ou o ecrã de projecção possam ser vistos- as cadeiras estão dispostas para quem lá se senta não dar as costas ao docente. Mas o que importa mesmo são as pessoas que lá se encontram: professor e alunos. É de um encontro que se trata, marcado a uma determinada hora, num dia da semana, numa dada sala. Todas estas determinações estão fixas para poderem repetir-se no tempo. Podemos assim perceber que não é o local onde uma aula tem lugar que é verdadeiramente importante. É, antes, o encontro. Ainda assim, o encontro não é compreensível como a presença simultânea de pessoas num mesmo local. Os estudantes podem estar sentados no mesmo sítio e ao mesmo tempo em que o professor simultaneamente aí está presente, e, ainda assim, não haver nenhum encontro: não estarem uns com outros de modo a poderem encontrar-se. Dar uma aula e ter uma aula depende do ser a encontrar-se. Quem dá a aula deve ir ao encontro de quem tem uma aula e quem está a ter uma aula deve também ir ao encontro de quem está a dar uma aula, ao encontro do que está a ser explicado, explanado, desenvolvido. A possibilidade da aula não está no sítio nem no tempo, na sala, enquanto tal, mas no “evento”, no “processo”, no “acontecimento” dela. Uma aula não pode pois ser descrita senão verbalmente: ter/dar ou estar a ter/dar, ter tido/ter dado ou vir a ter/vir a dar uma aula. O ser da aula é verbal. Embora digamos “aula”, não nos referimos ao sítio, nem à matéria dada na disciplina em particular ou ao nível do ensino, mas ao ser da própria aula, à sua duração qualitativa, ao que lá se passa, à interacção, simétrica ou não, entre pessoas. A aula é um acontecimento musical, então. Há ritmos diferentes, para públicos diferentes. Há micro-associações de alunos que se perfilam. Não apenas por haver ritmos diferentes de aprendizagem, estados diferentes, etapas diferenciadas, em que os alunos encontram. Mas porque há interesses completamente diferentes e cada pessoa tem o seu interesse. O mais estranho é que nem sempre as pessoas sabem quais são os seus interesses. É a sessão particular ou os momentos particulares de uma sessão que despertam interesses nas pessoas, que poderão nem saber que podiam ser susceptíveis desses interesses. O professor não deve apenas travar um solilóquio consigo, deve auscultar ao mesmo tempo que fala os ritmos de captação do que diz, os interesses que são despertos ou não. O que diz pode ser dito de muitas maneiras e pode não ter interesse nenhum, mas também esta falta de interesse tem de ser perseguida até à sua genealogia. A aula dura no tempo. Começa já com o fim marcado. Começa depois de uma aula anterior, se não for a primeira do dia e antecede outra que se lhe seguirá, se não for a última do dia. Mas é sempre com os olhos postos no fim da aula como no fim de um concerto sem encore, que a aula decorre. Começa a partir do fim em contagem de crescente. É como se formalmente a aula estivesse sempre projectada do seu fim para o princípio, retrospectivamente do futuro para o presente, sempre a queimar etapas. Uma aula tem um alinhamento, como se fosse um alinhamento de músicas. Tem partes, pode ser esboçada ao princípio no sumário em poucas linhas e em breves instantes. Pode ter assim um tema ou algumas frases que correspondem a refrões que têm de ser repetidos para reforçar a sua presença. A aula admite, talvez mesmo até, força a variações. A aula tem um elemento de improvisação própria do jazz. As formulações vêm não se sabe de onde nem como, mas fica-se suspenso do que o professor diz, como o professor está em suspenso, na expectativa, do que vai dizer, sem pensar bem nisso. Mas acontece: o sentido abre o horizonte já com as palavras implícitas do que vai ser dito. É onde se chega e como se procura lá chegar o que importa. Não pode ser uma repetição da lição decorada. Mesmo confusa, a aula é o resultado pro-activo do que se quer dizer e explicar, mas sem bem se saber como se abre do futuro imediato ou mais ou menos mediato a dimensão do sentido que é perseguida e não repetida. Tal como na música é a expectativa que domina a aula, o por onde ir, onde quer chegar, o ritmo, a melodia.