Turbulento período de transição

[dropcap]G[/dropcap]uerras por toda a China marcaram o reinado do Imperador Shunzhi (1644-1661). No início, contra Li Zicheng, líder dos rebeldes camponeses e militares de Shaanxi e cuja chegada a Beijing levou o último imperador da Dinastia Ming a enforcar-se. Já com o Trono do Dragão ocupado pela Dinastia Qing, logo as cortes dos príncipes ming, cujo sonho era retomar o poder, instalaram-se no centro e Sul da China, onde os exércitos manchus os combateram até 1661. Também em Beijing, um outro tipo de guerra ocorreu entre os jesuítas da Missão e os mandarins do Tribunal dos Ritos, incomodados com o relacionamento íntimo do padre Adam Schall e Shunzhi.

O manchu príncipe de Rui (Dorgon), que em Beijing desalojara os revoltosos e colocara o Imperador Shunzhi no trono da China, como regente político e militar mandou o príncipe de Ying (Ajige) em perseguição a Li Zicheng, terminando este morto numa emboscada no Verão de 1645.

Quando em 1644 a corte ming se mudou para Yingtian (Nanjing) e Zhu Yousong, o príncipe de Fu, se tornou o Imperador Hong Guang (1644-1645) da Dinastia Ming do Sul, o regente Dorgon, tio do Imperador Shunzhi, enviou o príncipe de Yu (Aisin-gioro Duoduo) para acabar com essa veleidade. A curta existência do primeiro regime Ming do Sul terminou no Verão de 1645, após um general traidor entregar às tropas qing o efémero imperador, fugindo a corte ming para Hangzhou, onde se dividiu. Uma parte dirigiu-se para Shaoxing (Zhejiang), ficando aí Zhu Yihai, o príncipe de Lu, como imperador de Julho 1645 a Junho 1646. Pertencia ele à nona geração do décimo filho do primeiro imperador da dinastia Ming, Zhu Yuanzhang. Conseguiu repelir um ataque das tropas qing mas, com comandantes militares arrogantes e desobedientes, o poder caiu nas mãos dos eunucos e no confronto seguinte com os qing logo saiu derrotado. A outra corte refugiou-se em Fuzhou (Fujian), subindo ao trono Zhu Yujian como Imperador Long Wu (Agosto 1645 – Outubro 1646). Este, quando em 1644 o príncipe de Fu se tornou Imperador e o libertou da prisão, recuperara o título de príncipe de Tang, que lhe fora retirado em 1636. Pertencia Zhu Yujian à oitava geração, descendente do terceiro filho de Zhu Yuanzhang. Mas bastou um ano para esse imperador e o de Shaoxing serem destronados pelas tropas manchus.

Outra bolsa de resistência aos qing ocorreu em Chengdu, Sichuan, quando em 1644 Zhang Xianzhong se autoproclamou imperador do Grande Reino do Ocidente. Aliado ocasional de Li Zicheng até 1640, acordaram então delimitar as suas áreas de acção. Em Chengdu, Zhang encontrou a Missão jesuíta fundada em 1640 pelo padre Luís Buglio e estando este doente veio para o ajudar Gabriel de Magalhães S.J., após um ano a estudar chinês em Hangzhou. Foram os padres levados para a corte, decalcada da Dinastia Ming, a fim de o aconselharem com os seus conhecimentos. Sanguinário governante, instaurou um regime de terror com massivas execuções e nem mesmo os missionários estiveram livres de perigo. Zhang foi morto pelos qing a 2 de Janeiro de 1647, numa emboscada nas Montanhas de Fenghuang, em Xichong.

Em 1646 revoltava-se Zhu Youlang, tomando as províncias de Guangdong e Guangxi. Esta corte ming, a última, só teve o seu fim em 1661.

Versão dos jesuítas

“Ao contrário do relacionamento conflituoso com o Budismo e o Taoísmo, os jesuítas manifestaram desde o início uma atitude de grande abertura face aos valores morais e éticos propostos pelo Confucionismo, por eles considerado, não como uma religião, mas antes como uma sabedoria ou um código de preceitos morais para a condução prática da vida”, segundo Horácio Peixoto de Araújo. São deste autor do livro ‘Os Jesuítas no Império da China’, as citações que se seguem, “Se Adam Schall gozava da confiança do imperador e da amizade de alguns importantes dignatários da Corte, não lhe faltavam também fortes adversários que apenas aguardavam ocasião oportuna para manifestarem o seu desagrado ou mesmo a sua total oposição a semelhantes larguezas concedidas a um estrangeiro. Entre esses adversários, destacava-se o mandarim Guen, Presidente do Li Pú ou Tribunal dos Ritos de Pequim.

Por diversas vezes, tinha este tomado iniciativas no sentido de provocar o afastamento do jesuíta do cargo de Director do Tribunal da Astronomia ou das Matemáticas. A ocasião para um frente-a-frente público acabaria por surgir em princípios de 1658, na sequência da morte do príncipe herdeiro, filho do imperador Shun-zhi” e da dama de origem tártara, chamada Tong O Fei, a sua concubina preferida.

Lembremos que o príncipe de Rong, quarto filho do Imperador Shunzhi, logo que nasceu foi escolhido como sucessor, tal o amor que o imperador tinha pela mãe, a favorita Donggo hala, mas passados 105 dias morreu a 25 de Fevereiro de 1658. Se aqui já demos uma versão, agora deixamos a História contada pelos Jesuítas e assim regressamos ao relatado por Horácio Peixoto de Araújo.

“De acordo com as normas em vigor, competia ao Tribunal da Astronomia e, em última análise, ao seu Director Adam Schall, a decisão sobre a hora considerada mais ditosa para a realização do funeral do pequeno príncipe. Observados os procedimentos previstos para tais circunstâncias, Schall comunicou a Guen a hora exacta em que deveriam começar os rituais fúnebres. Este, a quem competia, na sua qualidade de Presidente do Li Pú, a organização das solenes exéquias dos membros da família imperial, ignorou tal informação e deu início às cerimónias duas horas mais tarde.

Entretanto, fosse para evitar previsíveis dificuldades, fosse para comprometer pessoalmente o Padre Schall, Guen falsificou o despacho que tinha recebido, substituindo a hora nele apontada pela hora da efectiva realização do enterro. Ao tomar conhecimento deste facto e receando, por sua vez, as gravosas consequências de tal alteração, Adam Schall decidiu informar o imperador do sucedido. Averiguados os acontecimentos, Guen foi deposto do alto cargo que ocupava e só por intercessão de grandes mandarins conseguiu evitar a condenação à morte.”

Os jesuítas começaram a perceber as dificuldades que iriam ter quando o Imperador Shunzhi morresse. Segundo Gabriel de Magalhães, . Para agravar a situação, em 1659 Yang Guang-Xian (杨光先) escreveu o livro BuDeYi (不得已, Refutação de uma Doutrina Perniciosa), “posicionando-se abertamente contra a religião cristã”, “doutrina funesta e contrária às mais genuínas tradições culturais e sociais do império, já que não respeitava os cinco grandes princípios que fundamentavam a arquitectura dos vários níveis de relações no interior da sociedade chinesa”.

Segundo Gabriel de Magalhães, para responder a esse livro o padre jesuíta Buglio escreveu ‘Apologia’, que para corresponder ao estilo do país o intitulou ‘Refuto porque não posso mais’, (不得已辨, BuDe YiBian).

8 Abr 2019

Turbulento período na China

 

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]China confrontada desde 1850 com a Revolta dos Taiping (da inspiração cristã de um chinês e que durou até 1864), levou a meio com a II Guerra do Ópio (1856-60) entre as potências estrangeiras e o Governo Qing. Já em 1854, as forças invasoras apoiavam as do sétimo Imperador Qing, Xianfeng (Wen Zong, 1851-1861), contra os Taiping, que em 1856 se encontravam no máximo de poder militar. Sucesso a empurrar muitos grupos étnicos a seguir o exemplo, aparecendo novos corpos de combatentes por todo o país, mas começaram também as disputas entre os comandantes no interior dos Taiping e tal desconfiança levou a deserções.
Em 1858, o governo imperial viu-se seriamente embaraçado para reprimir a insurreição Taiping. “Quando Nankin já se achava em poder dos revoltosos e Shang-hai ameaçado da sua invasão, enviou o governo local, o táo-tai de Sahng-hai, os seus juncos de guerra para aquela cidade, acompanhados de treze lorchas mercantes pertencentes à praça de Macao, embarcações que lhe mereciam mais confiança que os seus navios; o resultado desta empresa foi o que era de esperar: os inúmeros juncos dos rebeldes, tripulados por alguns europeus e americanos, logo que avistaram a esquadra do governo, desceram o rio, e aquela retirou, evitando assim a sua destruição. Continuando o pânico em Shang-hai, comprou o táo-tai, quatro navios, uns ingleses, outros americanos, tripulando-os com marinheiros europeus, para o que teve de oferecer salários elevadíssimos. Achavam-se nesta ocasião fundeados defronte desta cidade, dois navios ingleses, com o representante da Grã-Bretanha em Hongkong, Sir G. Bonham, que se transportou, no Hermes, a Nankin, a fim de indagar em que disposições estavam os insurrectos a respeito dos europeus residentes em Shang-hai. Por seu turno, os insurrectos, pertencentes à sociedade secreta a , e já senhores de Shang hai, incorporaram entre os seus barcos, um navio europeu, o Glenlyon, que foi capturado por dois juncos pertencentes à esquadrilha imperial. Era de supor que os rebeldes, costumados às manobras dos navios indígenas, dificilmente evitariam a abordagem das embarcações do governo.”

Factura do auxílio não pedido

Os chineses consideram o catolicismo e o protestantismo, na China desde 1807, como diferentes religiões devido à diferença como traduzem conceitos bíblicos e a palavra Deus, percebendo haver entre ambas, uma profunda clivagem e rivalidade.
Com o fim da II Guerra do Ópio, desde 1860 chegavam em grande número à China padres cristãos protestantes trazendo uma forma mais competitiva de missionar, propiciando empregos nas firmas das potências estrangeiras e outros benefícios aos chineses convertidos ao Cristianismo. Privilégios a criarem grande ressentimento, traduzido mais tarde na destruição de igrejas, muitas construídas sem obedecer aos costumes e regras de geomância, por isso consideradas como criadoras de má energia. Mas patrocinaram também a ida para o estrangeiro de estudantes, aprender e adoptar o pensamento Ocidental e no regresso servirem de intérpretes. Foram enviados para a Europa e Estados Unidas da América, mas a burocracia e a confusão que grassava na dinastia Qing boicotou o processo, já sem interesse desses países cristãos pois contavam, para o estilo comercial de modernização, com as escolas dentro da China.
O apoio das forças estrangeiras ao Governo Qing desequilibrou, começando os Taiping a perder controlo das regiões. Segundo Marques Pereira, a 24 de Outubro de 1862 foi “tomada pela segunda vez aos rebeldes Tai-ping a cidade de Kah-ding, na província de Kiang-su, pelas tropas anglo-francesas, em número de 4550 combatentes.
Não é decerto uma página brilhante para a história das relações dos povos europeus com a China essa aliança de 1862 e 63, imposta ao governo imperial pelas tropas que ficaram da guerra de 1860, esperando o pagamento integral das indemnizações. O pretexto fora a princípio justo. Estando Shanghai e outros portos ameaçados com a temível proximidade da célebre insurreição, cujas hordas devastadores tão depressa se encarregaram de desmentir os intentos elevadamente políticos que primeiro lhe atribuíram, os aliados tomaram por motivo da intervenção a defesa dos portos abertos ao comércio estrangeiro. Como porém não bastava para conservar a importância comercial destas cidades, circunscrever a defesa aos subúrbios, e convinha para a fácil troca das mercadorias desafrontar os pontos próximos, oprimidos pela vizinhança dos rebeldes; – as forças europeias, animadas pelos pingues despojos de uma guerra fácil, foram pouco a pouco alargando a área do auxílio prestado aos imperiais, e todos os dias se preparava uma nova expedição a algum ponto mais distante do que o último que se vencera. Com escandalosa contradição do pretexto, deu-se então uma guerra singular, que só feria os inofensivos. Saqueavam-se quase inteiramente as cidades e povoações de onde eram expulsos os rebeldes, de sorte que os habitantes entregavam aos seus libertadores supostos o resto de fazenda que por ventura lhes ficara da invasão.” Em Maio de 1862, “presenciei (Marques Pereira) em Shanghai, durante cinco dias, a entrada dos despojos da primeira libertação de Kah-ding (vendidos em hasta pública, nos consulados inglês e francês); e contudo havia poucas semanas que os rebeldes tinham tomado essa cidade, sem lhe levarem mais do que o seu ânimo feroz e devastador. Assim foi que, em breve tempo, longe de ter mais seguro o seu comércio e prosperidade, Shanghai ficou solitária em um raio de dezenas de léguas. Pode dizer-se que, para essas povoações que desapareceram, o patrocínio dos aliados foi tão desastroso como a própria insurreição dos Taiping.”
No trono chinês encontrava-se já o Imperador Tongzhi (Mu Zong, 1862-1874), quando em 1863 a milícia Xiang de Hunan, criada pelo General Zheng Guofan, cercou Tianjin, na posse dos Taiping. Seis meses de cerco e a 1 de Junho de 1864, Hong Xiuquan doente, morreu. Em Agosto a milícia da província de Hunan dinamitou a muralha da cidade e após combates de rua, onde a morte se espalhou por Tianjin, saqueada e incendiada, voltou de novo esta para o Governo Qing. Refere Beatriz Basto da Silva, “Nos quinze anos (1850-1864) em que ocorreu a revolta dos T’ai-Pings, «Reino pacificado do céu», destruiu 600 vilas e cidades e deixou a China semelhante a um deserto, com perdas de milhões de vidas e prejuízos irreparáveis para as artes e literatura. Trata-se de um levantamento popular de descontentes, com uma conotação religiosa distorcida, pervertida.” Hong Xiuquan, um “anti-manchu, fortemente influenciado por valores ocidentais, subverteu o sudeste da China, de Cantão a Nanquim. O igualitarismo e a modernização social apresentaram-se contra os conservadores confucianos e os aristocratas.”
Pela imposição do auxílio não pedido, teve o Governo chinês de pagar as despesas das tropas europeias, até que lhes aprouve a elas retirar-se, em 1864, o que importou em mais de um milhão de patacas.

Destaque
Os chineses consideram o catolicismo e o protestantismo como diferentes religiões devido à diferença como traduzem conceitos bíblicos e a palavra Deus, percebendo haver entre ambas, uma profunda clivagem e rivalidade.

24 Ago 2018