Diagnóstico I

Tucídides convida quem quer que o leia a percorrer tudo o que descreveu a partir dos testemunhos a que aludiu. E não ficará enganado. O sentido das suas formulações é diferente do dos poetas e do dos repórteres. Os poetas “cantaram” estes assuntos para lhes darmos crédito.

Os repórteres da escrita não os compuseram em vista da verdade, mas para os tornarem mais agradáveis ao ouvido. Se os poetas embelezam o passado e os repórteres o romantizam, deve-se a uma única razão. O acesso ao passado apresenta factos que não podem ser refutados. Não podem, por isso, ser credíveis (Cf. H. I, 21.).

A passagem do tempo cria um distanciamento inultrapassável. Dilui os factos no reino da pura mitologia.
Como é possível desconstruir toda a camada lírica e mítica da narrativa? Como podemos reconstruir a situação para vermos a realidade olhos nos olhos? Será o processo de trazer o passado ao presente? Ou viajar no tempo e ficar deposto no passado? Percebemos que muitos dos que estiveram presentes contam de modo diverso o que aconteceu com uma identidade de sentido. De resto, estar no presente em que uma situação se dá pode não querer dizer senão criar um facto avulso.

O método alternativo é o de tentar descobrir a partir dos sinais (sêmeia) mais evidentes o que aconteceu no passado. Há uma enorme dificuldade em emitir um juízo sobre o que se passa num presente, sobretudo quando esse alguém está completamente envolvido nesse presente. Depois, quando o tempo passa, o vigor eficaz do presente perde-se, e é o passado que assume a importância.

Não obstante, é inevitável partir de tekmêria para construir uma diêgêsis, um percurso narrativo, um diarchomai, um passar tudo em revista pormenorizadamente. Organizar. Seleccionar. Os tekmêria dão um conteúdo a entender. Uns são relevantes para a construção da verdade e dignos de crédito. O modo de proceder é completamente diferentemente do dos poetas e dos que compõem escritos. A organização do “material” tem em vista agradar à audiência. Não é o resultado de uma investigação da verdade, zêtêsis alêtheias.

Um dos problemas fundamentais que se põe resulta do relevo e acentuação que se dá ao que acontece. O nosso envolvimento directo com uma determinada situação presente cria um parti pris. O passado pode, portanto, ofuscar o presente. As situações por que passamos quando “o tempo era tempo” criam uma marca indelével. É relativamente a esse passado que podemos desvalorizar a importância do presente, do agora. Mas é possível perceber que a guerra que Tucídides descreve não é apenas importante porque ele está envolvido nela; o que importa então é isolar e reconhecer os elementos que caracterizam esta guerra como decisivos para o futuro das partes envolvidas.

As notas metodológicas visam neutralizar o perspectivismo na “leitura” dos acontecimentos. Foi necessário compreender tudo o que foi dito em discurso pelos intervenientes directos na guerra. Mas foi difícil reter com rigor as palavras que foram proferidas pelos outros, mesmo quando o próprio as escutou. Também os outros experimentavam a mesma dificuldade, mesmo tendo estado presente a escutar os discursos. Havia o risco de filtro e distorção. Assim, o método foi o da reconstituição ou reconstrução. O acesso tinha de resultar de uma interpretação das intenções, da mentalidade, de cada orador, dadas as circunstâncias. É daqui que se pôs na boca dos oradores o que terá sido dito, de forma apropriada às circunstâncias presentes. A descoberta da intenção global abre para o que terá sido dito.

“Conservar na memória” (διαμνημονεῦσαι) o que o próprio escutou em carne e osso (αὐτὸς ἤκουσα) contrasta com a aparente interpretação subjectiva do que “deverão ter dito” a respeito de cada situação que se constituiu. A análise radica na interpretação da gnômê. Sobre as acções postas em prática na guerra, o julgamento não devia basear-se numa impressão ocasional de uma qualquer informação obtida ao acaso. De resto, nem tal parece o caso quando alguém recebe uma informação. Cada pessoa poderá ter ficado com uma impressão diferente. Por isso, é extraordinariamente difícil descobrir a verdade. Os que estiveram presentes a assistir ou a agir ao vivo em cada acção não disseram as mesmas coisas sobre os mesmos acontecimentos. Cada pessoa expõem-nos consoante a sua compreensão. E é assim que os terá retido na memória.
A análise deve descrever aqueles acontecimentos que o próprio terá presenciado e sobre os quais pode discorrer individualmente.

A informação tem sempre de dar garantias de rigor suficiente.
O apuramento da verdade dos factos implica uma tentativa de objectivação. Não anula o carácter subjectivo. Alguém pode ter estado lá, ter feito a experiência em “carne e osso” pelo contacto directo com os acontecimentos. E mesmo assim é necessária a compreensão de que também no testemunho há alterações de perspectiva, mudanças na avaliação. Há uma diferença entre “estar metido numa situação” e “estar já fora dela”. O “fora” indica não ter estado no horizonte situacional.

O apuramento complexo do que se terá passado é levado ao extremo quando se procura fixar o sentido do que aconteceu. Como constituir um cursor temporal que nos catapulte para a situação datada do passado?

É no elemento construtivo, de seguida, na ordenação de uma sequência de acontecimentos, no hecsês que se pode constituir uma narrativa explicativa de episódios que só aparentemente são avulsos. A ideia é a de estabelecer um quadro clínico em que se descreve o impacto, os factos relevantes que precederam esse acometimento, o desenvolvimento da situação crítica, a identificação para onde tende o curso da história e que reversos terá. E fundamentalmente qual é a nossa capacidade de antecipação do desfecho de uma situação crítica, qual o sentido do “em aberto” da vida? O pressuposto filosófico é o de uma genealogia da história e do sentido do tempo.

23 Mar 2018

Autópsia de Tucídides

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo se podem compreender palavras como prova indirecta (tekmêrion), prova directa ou sintoma (sêmeion), e testemunho directo (autós parên). Como constituir rigor (akribeia) no apuramento da verdade (alêtheia) em Tucídides? Tucídides opera com palavras que diagnosticam a irrupção de um conflito civil do mesmo modo que descreve a febre tifoide. É assim também que se debruça sobre o modo como enfoca a realidade a partir do ponto de vista de escritor: historiógrafo: o da autopsia.

Assim, as considerações metódicas, o diagnóstico da guerra civil em Corcireia e a descrição da Peste, poderão dar-nos pistas da lógica da descoberta da verdade, do carácter exaustivo da análise de Tucídides. A autopsia leva a um redução à causa ou às causas que principalmente podem explicar o horizonte de sentido em que ocorrem. As três frentes de análise exploram o horizonte do humano (a anthrôpeia physis). Elas partem do meio em que nos encontramos inseridos. Põem-no a claro nos seus contornos. É no campo da essência humana que os sintomas se manifestam. A sua análise é uma etologia que visa a remoção dos obstáculos da doença e procuram obviar a potência destruidora da guerra.

É no horizonte de sentido do humano que o próprio quadro de sentido se perde, se esvazia, se deturpa, mas assim também procura recuperar o sentido de palavras como a honra e a glória e destruir os efeitos nocivos do que nos constitui a nós como humanos: a luxúria do poder (archê), a ganância (pleonexia) e a ambição (philotimia).

A vida é susceptível de uma epidemia pandémica. Mas é no interior dessa pandemia que procuramos viver. A identificação da causa das coisas é uma peculiar forma de projectar em antecipação essa possibilidade.

O acesso ao passado tem uma difícil base de credibilidade. Não há um tekmêrion, uma marca distintiva, que permita saber o que efectivamente se passou em cada episódio. O tekmêrion é uma prova argumentativa. O substantivo é o complemento directo do verbo τεκμαίρομαι. Numa primeira acepção significa “atribuição”, “investimento de sentido”, mas também intenção. Depois de Homero quer dizer ajuizar a partir de sinais ou pistas. Fazer estimativas. Conjecturar. Formular hipóteses. Um tekmêrion enquanto o complemento de um tekmairesthai, permite uma interpretação de cada dado avulso, pondo-o em conexão, num contexto com uma sequência. A interpretação da sequência ou série é mais do que a soma de cada episódio avulso. A evidência não resulta, contudo, de um contacto directo, ao vivo, com os acontecimentos que estão em causa.

A investigação da verdade é difícil para a maior parte das pessoas. É por isso que tendem a voltar-se para o que está pronto, disponível e à mão.

A passagem do tempo cria um distanciamento inultrapassável. Dilui-os no reino da pura mitologia. Como é possível desconstruir toda a camada lírica e mítica da narrativa? Como podemos reconstruir a situação para vermos olhos nos olhos a realidade? Será o processo de trazer o passado ao presente? Ou viajar no tempo e ficar deposto no passado? Percebemos que muitos dos que estiveram presentes contam de modo diverso o que aconteceu com uma identidade de sentido. De resto, estar no presente em que uma situação se dá pode não querer dizer senão criar um facto avulso.

O método alternativo é o de tentar descobrir a partir dos sinais (sêmeia) mais evidentes o que aconteceu no passado. Há uma enorme dificuldade em emitir um juízo sobre o que se passa num presente sobretudo quando esse alguém está completamente envolvido nesse presente. Depois, quando o tempo passa, o vigor eficaz do presente perde-se e é o passado que assume a importância.

Um dos problemas fundamentais que se põe resulta do relevo e acentuação que se dá ao que acontece. O nosso envolvimento directo com uma determinada situação presente cria uma posição. O passado pode, portanto, ofuscar o presente. As situações por que passamos quando o tempo era o tempo cria uma marca indelével. É relativamente a esse passado que podemos desvalorizar a importância do presente de agora. Mas decisivo é isolar e reconhecer os elementos que caracterizam o passado já a projectarem-se para o futuro, a constituírem futuro.

19 Jan 2018