As trabalhadoras do sexo e eu

A propósito da divulgação de uma concentração sobre o direito à habitação em Portugal, vi-me no bairro mais sexual de uma cidade do interior. Nas grandes metrópoles, sei identificar algumas trabalhadoras do sexo. Elas costumam estar em certas ruas para que sejam vistas e interpeladas por quem quiser contratar os seus serviços.

Neste lugar a disposição era bem diferente. Fazia lembrar um red light district de Amesterdão ou Hamburgo muito mais modesto. Demorei a entendê-lo, confesso. Quando as vi, pensei que eram mulheres à janela num dia solarengo. Só depois das duas primeiras janelas é que percebi o padrão. Eram quatro apartamentos do rés do chão, em dois blocos sucessivos de prédios. Elas, todas em linha, exibiam-se, tal como uma vitrine se tratasse. Algumas mais produzidas do que outras. Umas maquilhadas e com roupa de cores berrantes e decotes generosos, outras com um fato de treino justinho e curto.

Para a divulgação de um evento pelo direito à habitação não me coibi de as interpelar com palavras de justiça social. Nós todas precisamos de um tecto e de rendas justas. Houve quem me pedisse esclarecimentos sobre panfleto: “isto é o quê, exactamente?”. Ela talvez tivesse ficado incrédula pela natureza do assunto. Eu expliquei o melhor que pude. E ela sorriu e concordou com as reivindicações. Fantasiei de como terão sido outras interações ao longo do seu tempo ali. Talvez grupos religiosos sugerindo um caminho para a redenção.

Talvez outros com pena ou zanga. A maioria a querer pagar por um serviço sexual. Eu interpelei-as como cidadãs preocupadas. Algumas agradeceram o panfleto timidamente. Outras reagiam em concordância: “sim, sim, isto está péssimo para encontrar casa”.

Senti uma admiração imensa por elas. Estavam ali, expostas e visíveis. Elas que estão entre a violência do sistema machista e a luta contra o sistema extrativista e capitalista. Elas que podem ser vistas como vítimas do sistema ou a força da resistência. O trabalho sexual está cheio de dilemas e tensões que poucos querem assumir. No coração está o sexo que naturalmente se cobre de moralismos irritantes e de pouca reflexão. Diria que é preciso disponibilidade para olhar para a complexidade do trabalho sexual. Uma atitude que exige tempo, compreensão, capacidade de escuta e, especialmente, a possibilidade destas trabalhadoras terem lugar de fala.

Saí de lá com muita vontade de falar com elas, que partilhassem as suas experiências comigo. Queria aprender mais sobre essa complexidade que teoricamente compreendo, mas que de viva-voz ouvi pouco. Saí de lá também com medo de estar de algum modo a contribuir para o fetiche da prostituição.

Há quem viva o fetiche sexual, outros o fetiche intelectual. Fantasiar sobre as possibilidades de desgraça e o possível empoderamento do trabalho sexual não deixa de ser fantasia. Estas são pré-concepções que nos ajudam a dar sentido às múltiplas opressões sociais, mas que em pouco ou nada podem refletir a realidade vivida.

Essa realidade que me é distante do dia-a-dia de idas para o trabalho e regressos a casa. Elas provavelmente não querem ser vitimizadas, nem tidas como heroínas, ou se calhar até querem as duas coisas. A verdade é que eu não sei. Só soube que, aquelas trabalhadoras do sexo, concordam que as rendas estão muito caras.

30 Mar 2023