Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasO Talento Invejado ou “A Single Man” de Tom Ford [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntenda-se por amor erótico o equilíbrio entre os afectos e o desejo sexual entre duas pessoas, tal como o escrevia Platão há já algum tempo. E talvez se tenha de ter um talento para esse amor erótico como aquele que se tem para a música. Talvez haja pré-requisitos exigidos, que não sejam para todos. E do mesmo modo que muitas pessoas não têm talento para a música, mas ficam fascinadas a tal ponto de quererem ser músicos, também assim acontece com o amor. Não temos talento para ele, mas o fascínio que ele exerce em nós faz-nos querer ser como aqueles que têm talento para ele. Não é que o amor erótico – encontrar a nossa outra metade e viver com ela para sempre – não exista, mas não existe para todos, como também o ser músico não existe para todos. Não basta querer para ser. Mas a inveja do amor para sempre parece ser maior e mais comum do que a inveja de qualquer outro talento humano. É pelo menos assim que ficamos a pensar depois de assistirmos ao filme A Single Man, de Tom Ford. Um amor assim, como o que na vida real o próprio realizador e Richard Buckley vivem (e também o autor do romance homónimo de onde Ford adaptou o filme, Christopher Isherwood, o viveu com o seu amante e amado Don Bachardy). Desde que se conheceram, em 1986, Tom com 25 anos e Richard com 38, vivem uma história de amor eterno. E, no fundo, o filme – apesar de ter sido adaptado do romance homónimo de Christopher Isherwood – é como se Tom se visse a si mesmo sem Richard (e antes dele Christopher Isherwood sem Don Bashardy). Pois como viver depois da perda de um grande amor? Como continuar a viver sem essa grandeza, essa experiência que se adivinha sublime? É esta pergunta que está ali exposta em carne viva no filme. Depois de um grande amor sobrevive-se, ou não, mas não se consegue mais do que isso. De um modo geral, no contexto da população humana, desde o início dos tempos até agora, poucos de nós teremos experimentado esse amor, se bem que muitas vezes julgamos que sim, pois tendemos a confundir esta experiência plena de amor erótico com a paixão, que é mais comum e muito mais devastadora. A paixão tende a devastar-nos no seu próprio exercer-se, ao passo que o amor erótico só nos devasta quando acaba, como acontece no filme de Tom Ford. E o filme começa com um sonho, onde o protagonista, George (interpretado por Colin Firth) caminha sobre e debaixo de neve na direcção de um carro acidentado, e junto a ele encontra-se um corpo, sem vida, com sangue no rosto. George deita-se junto a ele, olha-o e beija-o. Acorda. E escuta-se os seus pensamentos: “Acordar nos últimos meses foi realmente muito doloroso. A constatação fria de que ainda estou aqui.” E a câmara mostra-nos um frasco de comprimidos sobre a mesa de cabeceira. Sim, o filme é muito mais sobre a perda – a perda daquele que se ama – do que sobre o amor, embora também o seja. O filme é sobre o ultimo dia de vida de homem que amava outro – e era amado por ele – que morreu de acidente de carro há oito meses. O filme é sobre a falta de sentido da vida depois da experiência do amor erótico na sua plenitude. Um flashback traz-nos o momento da notícia do acidente, pelo telefone. O horror. Depois, e de volta a este último dia, vemos um revólver dentro de uma gaveta de uma cómoda e um livro sobre ela, de Aldous Huxley, After A Many que é também um verso do poeta romântico inglês Tennyson, do seu poema Titono, “After many a summer dies the swan”. O poema é sobre essa figura da mitologia grega, Titono, por quem Aurora, apaixonada por ele, pede a Zeus que lhe dê a imortalidade, esquecendo contudo pedir também a juventude eterna. Assim, Titono envelhece para além do suportável, impedido que está de morrer. A sua vida torna-se o seu inferno. O seu corpo o seu cárcere odioso e torturante. E lembramo-nos de imediato do verso de Paul Claudel, em Le Soulier de Satin, “naufrago no meu corpo” (citação de memória). Por seu lado, o livro de Huxley retrata o narcisismo norte-americano, o culto da juventude, tendo como horizonte esses poema e verso de Tennyson, que lhe dá o título. George guarda dentro da sua pasta, com a qual sairá à rua, o revólver e o livro. Já no liceu, a caminho de uma aula, em conversa com um colega que fala da ameaça nuclear e de abrigos para uma eventual chuva de mísseis, o nosso herói responde: “Grant, um mundo sem sentimentos é um mundo onde não quero viver.” Entra na sala de aulas, senta-se sobre a secretária e cita: “After many a summer dies the swan.” [Depois de muitos, o cisne morre num Verão] De volta a casa, deixa tudo preparado, para dar o mínimo de trabalho possível àqueles que tiverem de tratar do destino do seu corpo. Adivinha-se que a carta que deixa escrita seja para a sua grande amiga, Charlotte (Julianne Moore). A mesa, com o revólver, as diversas chaves, cartas, documentos e o a indumentária que lhe devem vestir, forma uma sinistra e moderna “natureza morta”. A preocupação dele, por não dar trabalho aos outros – ou o menos possível – vai ao ponto de tentar fazer com que não tenham de limpar o sangue, e tenta então cometer o suicídio dentro de um saco de cama. Deparando-se com a dificuldade, toca o telefone. Ele sabe que é Charlotte, sai do saco de cama e atende: “Sim, comprei o Gin, estou aí em dez minutos.” E sai de casa. Chegámos a casa de Charlote, ela preparou o jantar para os dois. Ela é tão só que nem com ela… E ele completamente só, como só se está depois do amor, depois de um amor de dezasseis anos. Um amor insubstituível, como diz à amiga. No lugar dele ficou um buraco. Um buraco que não é uma coisa ou a ausência de uma coisa, mas que é ele agora, o buraco que ele apressa em levar para a cova. Ele é um buraco e amiga um vazio, que é o que todos somos sem amor. E é ela, Charlotte, quem o diz: “Sempre tive inveja [do amor de vocês], eu nunca tive um amor assim [na vida].” E é aqui que ficamos depostos no clímax do filme, no cerne da questão humana que nos prende ao universo: o amor e a sua falta. De tanto não querermos viver num mundo sem sentimentos e de tanto não conseguirmos viver sem amor, que inventámos que o amor não existia. E conseguimos acreditar nisso, como antes se acreditava em Deus e antes disso nos deuses. Eis-nos chegados aos dias em que o amor é uma ilusão. O talento invejado.