Tempo de ser a coisa outra

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] transparência nada nos diz que transpareça grande coisa nas questões que hoje nos propomos contemplar. Andamos na urdidura sempre maníaca da verdade para corrigir o que supostamente a mentira é e, sem que saibamos de uma ou de outra, toda a gente se arvora em grande entusiasta dessa designação mais vanguardista que não quer dizer nada, a não ser a vã e pouco lembrada memória das coisas. Estamos obliquamente condenados a ir buscar e a refazer o conteúdo de múltiplos saberes. Se a um dado momento nele entoava uma emoção precisa, neste entoa a falta de emoção imprecisa, que será mais uma malvadez ao arrepio da receptividade para aquilo que naturalmente nos faz bem, nem que seja o fazer bem o não fazer nada. Mas há que fazer nem que seja desfazendo o que estava feito, para tornar a fazer num exercício laborioso de adpatabilidade e de movimento. Os pressupostos ficam amargamente incomunicantes, as coisas que para aí se dizem como seja “inverdades” são inversas e cada um recria a cripta por onde um moribundo há-de dormir finalmente a paz tão desejada.

Basta haver um nódulo, um grão na engrenagem e todo o aparelho fica em alerta máximo. Por questões extemporâneas os homens tornam-se um género que “empapa” tudo não deixando passar o feminino na fonte dos seus saberes, ou mesmo, não saberes! Dos seus sabores. Onde o género impera, impera também a expansão e ela é tão explanativa que em frémito ideólogo ele se amarfanha por todos os recintos onde houver espaço de fecundação. Depois, dizem, com ares graves que estão sós nas suas competências e, sempre que se armam as discussões para todos, parece que o feminino se instala num pavoroso tédio masculinizante e se encripta numa forma que faz denotar em pólvora qualquer saber.

É muito amarga a realidade das coisas: se por um lado achamos que somos nós que enquanto pessoas que estamos cansadas, somos humildes também em reconhecer a nossa ignorância, a nossa impreparação para tarefa tão grande como a de existir; por outro, também andamos e flutuamos num mundo onde cada um tenta impor o seu domínio de forma “atabalhoadamente” absoluta, não crendo por isso que seja o de um espectro artificiosamente obscurantista, para isso seriam precisas componentes mais requintadas. Não, não é isso: é uma desmesura de índole autoritária que se acerca e se condiciona a si mesmo pela repetição, os séquitos, a demagogia e o artefacto mais ininteligível.

Em boa verdade, não acho a espécie Humana inteligente. Inteligir nem sempre é uma Teofania carregada de sujeições maiores. Somos o que podemos ser , talvez a caminho de uma qualquer inteligência, sim, que a manifestar-se vai ser andróide, vai ser a da ordem do homem vindouro, aquele que já não passa pela lei do ter de subsistir em qualquer domínio. Aspectos como a moral, a ética e até a transcendência terão de ser analisados e integrados de outras maneiras. Tudo será um processo sem dúvida tenaz e, esse sim, inteligente, onde por caminhos de massas melhoradas na sua superfície onde o mais fundo são as bases dos seus ecrãs algo se possa modificar. O grande mito do hermafrodita pode passar a ser real com a necessidade de estreitar o dissonante, de continuar lutando por aquilo que tão bem viu Almada Negreiros: «Unanimidade».

Eu sinto, enquanto mulher, a expansão da natureza homem em todos os canais – a televisão -, as técnicas, o mundo, as construções: e as mulheres estão libertas, sim, mas não tanto como se esperaria enquanto género humano que tende a ser mais um vício parado que espécie inventiva. E se não se conseguir andar mais e melhor pela idade, por causa do cansaço ou saturação, que se seja natural e reponhamos então as ordens vitais. O isolacionismo é um anátema que as sociedades de todos os grupos vivos impõem a alguns elementos, tanto podem ser cardumes, bandos, rebanhos ou manadas… há que colaborar de uma forma automática na função da sobrevivência, prova-se contudo que nem todo o organismo vivo é sustentado por anima. Pode viver sem estar animado ou estar tão desanimado pelo facto de viver que paralisa: para abrangência que detone e denote aspectos emocionais de carácter mais raro, há uma extensão que diz que essa probabilidade é amor, esse dom negado como princípio superlativo aos mais pensantes das tribos, o mais forte ou o mais sábio cria uma artificialidade que tende a abandonar os barcos que se afundam, como agora no Mediterrâneo. Por desleixo e falta de empatia, sem dúvida, mas também porque somos muitos, quando um dia que há-de vir olharmos para alguém será da ordem da aparição, mas isso só um dia quando formos tão poucos que tentemos salvar o outro como o nosso mais próximo bem- amado.

Por ora, tudo se move de maneira flutuante nesta Barca que tamanha onda há-de tragar sem que para isso sejamos convocados.

Nós que faltamos, que arranjamos no labor das nossas reservas oníricas apenas espaços para descrer, profanar ou vilipendiar o espaço outro, que ardilamos, que subjugamos, que somos levianos até à completa falta de talento;

Nós que temos muito e queremos mais, que tudo nos falta e nada produzimos, que tudo nos é devido sem dever, que somos importantes sem o ser, que, que, que….

Nós, esta imensa fornalha de despojos onde uma só força móvel não passou, estamos à espera diariamente de ganhar: a lotaria, o amor, a alimentação, as diversões, as coisas, de nos abastecermos de vida para que a nossa pareça a nossos olhos mais vivida. Mas é sempre a vida que nos vive, nós não vivemos a vida, a vida não quer saber de nós, nós temos a vida das coisas que trepam e as razões de não termos raízes no chão faz-nos frágeis em todas as circunstâncias.

A rotatividade dos factos provam que não somos nem importantes nem insubstituíveis, que tudo continua exacto no dia depois da nossa morte e que muitos anos hão-de passar até se achar de nós algo que interesse na cadeia das transformações. Quando por caminhos vários queremos inovar fazendo exactamente a mesma coisa, instala-se-nos um fastio perverso só parecido com a vingança das lapas que subjugam os espaços que detêm.

Sem confronto nem mordaça preparemos a nossa resistência para não sermos presos, de tudo que não se deve soltar é só a liberdade, não a podemos trocar por qualquer que seja a conveniência, ela é o único legado que se aguentará em nós enquanto os nossos espelhos nos devolverem o rosto que contemplado pode ser até uma obra de arte. Também não interessa amar os livres, eles são de forma tal que todo o amor produzido se expande em direcções que não contornam nem os braços, e se não tivermos membros, mais fica para a vitória de nem com eles termos de dizer adeus.

Aproximamo-nos de um Cabo tão Vicentino, quanto abstracto, e se uma luz vier mais voraz, os olhos cegam e nada filmamos e as imagens partidas não serão repostas e o que fizermos não será lembrado. Todo o instante nos indicia para depor amarras e contornar o agreste obstáculo que é viver. Se houver salvação, que nos salvem, nós, por nós, já ultrapassamos em muito a nossa parte. Concomitantemente à nosso terrível condição passeiam-se universos, e gentes com versos, versus gentes, que estão a um tempo próximos, dentro e distantes, o que precisam é de órgãos novos de modo a focarem as bases da sua existência. Trememos de insuficiência mórbida e de esclavagismo de memória.

Nós, os últimos de uma fornalha onde galacticamente nos foi dado o redil de um matadouro. Somos o açougue debaixo de um céu estrelado e agora riscado por gases estranhos que fazem das curvilíneas nuvens, erectas demonstrações de um género gasoso, terrivelmente varonil.

6 Jun 2017