Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasSem telhados de vidro [dropcap]S[/dropcap]ó quando, há muitos anos, fui morar para a Holanda é que percebi o que era a confissão. Foi por contraste que lá cheguei, mas não por ter comparado o mundo católico com o calvinista como quem separa o branco e o preto. Ao longo do tempo, verifiquei que as pessoas nos países baixos, na sua larga maioria, não dependiam do facto de terem que estar sempre a ‘contar-se uns aos outros’. Enquanto em Portugal os grupos de pessoas – nas suas mais variadas morfologias – dependiam dos entreactos teatrais que construíam entre si (os ‘desabafos’ em cadeia), na Holanda aquilo que os orientava era uma palavra dificilmente traduzível para Português: “zelfstandigheid” (que significa, mais ou menos, um estado de ser em que se é independente face ao outro). No mundo da cultura latina, a teia criada pelas relações dissolve amiúde a individualidade no meio das declarações, dos envolvimentos e dos afectos; no mundo protestante esse apagamento resiste bastante mais. A confissão, compreendi então, seria muito mais do que a herança de um dever de controlo social; ela poderia definir-se como um acto continuado de dramaturgia em que ‘a minha voz’ e a ‘voz do outro’ se atropelam. Com este tipo de anuência, é evidente que em Portugal a eficácia social perde muito terreno e isso acontece em nome, sobretudo, de um ‘pathos’ emotivo (em que o corpo dificilmente consegue sair do seu polvo para se soltar). O universo calvinista, ao invés, segreda a cada ser humano a capacidade de falar com deus, de ser deus, isto é, de ser individualizadamente livre. Os impactos desta diferença são enormes e revelam-se nas mais variadas áreas, hábitos e organizações da sociedade. Vem toda esta memória a propósito do que me acontece quando estou a meio de um romance, ou, com mais razão, se estou a iniciá-lo e ainda não sei bem que livro tenho em mãos. Nessas alturas, há uma grande atracção pelo silêncio que me prende de pés e mãos. Custa bastante, porque a tentação de dizer, de contar ou mesmo de dar a ler é enorme. Delatar é terrível. Levinas esclareceu o que se esconde nesta tentação, ao referir que “o Dizer é uma des-situação do sujeito”. Por outras palavras: ao contar ou ao dizer, o sujeito deixa de ser o que é, expõe-se e com isso arranca-se a si próprio nessa exposição. Desta forma, dizer ou contar é uma expulsão da ‘minha casa’ a que ‘eu próprio me condeno’. Ao revelar, estou a extraditar-me. Trata-se em suma de uma evasão (de mim mesmo) que deixa de ter qualquer retorno. Ao revelar apago-me e desencanto o mais profundo de mim, arruinando um dos sentidos essenciais da linguagem, enquanto morada do ser. Talvez seja por isso que os místicos e alguns poetas escrevem para atingir o silêncio. Apesar de ser conhecida esta vocação, também é verdade que os humanos – calvinistas ou não – são atravessados pela urgência de dizer. Esse apego (ou apelo) pela proximidade implicará, de qualquer modo, o termo de um lugar próprio e a entrada em cena de um nomadismo que é sempre, ainda que figuradamente, ‘uma expulsão de si’. Mas é justamente isso que um escritor mais necessita: uma habitação secreta em que se saiba posicionar, o que implica que verbalizar significa muitas vezes perder essa conquista íntima (que, no quadro da criação literária, é uma conquista única). O silêncio do escritor (que escreve literatura ou poesia) oscila entre os ímpetos da confissão latina e o sentido da holandesa “zelfstandigheid”. Há, de facto, escritores palavrosos e dados a entrevistas (sempre a postarem e a re-postarem nas redes sociais) e outros que preferem permanecer estoicamente reservados. Mas aquilo que urge guardar-se nada tem que ver com a palavra que mais me irrita neste tema – “spoiler” (detesto quando a ouço soletrar) -, geralmente reservada para partes de uma história (preferencialmente para o fim de uma história). Não, não se trata da história; trata-se dos segredos da construção, daqueles que são quase invisíveis mesmo para quem escreve: o alinhavar das frases, a voz que se domina, a sintaxe dos capítulos, fragmentos súbitos, fórmulas inesperadas, ligações entre personagens e os seus rascunhos, demolição de partes do discurso, cadências, inversões súbitas, partes que se cortam e colocam no início, processos narrativos paródicos, palavras perdidas, ordenações, sonoridades que se repetem, deixas e pontas por pegar, anunciações antes de tempo, cascatas que pareciam planeadas, cortes violentos na caracterização de personagens, músicas de fundo, ratoeiras discretas, prolepses estudadas, truques para enganar o leitor, oficinas de incipits, domínios do tempo, manobras involuntárias, elipses intencionais, manufactura de imagens, nomes que se alteram, paisagens diferidas, diálogos riscados, enfim: uma inconfessável fábrica que precisa de tudo menos de consumir telhas e telhados de vidro.